Padre Jorge Guarda, Diocese de Leiria-Fátima
Na linguagem corrente, dá-se o nome “anjo” a quem protege, vela, acompanha, ajuda e cuida com amor. É assim que aplicamos a palavra quando pretendemos elogiar e agradecer a alguém pelo bem que nos fez. Anjo é, portanto, alguém que apoia a vida nas situações de fragilidade e de aflição. Também se consideram anjos as crianças e as pessoas boas que morrem.
Na véspera da celebração católica do Anjo da Guarda de Portugal, o parlamento português aprovou uma lei que despenaliza os “anjos da morte”, ou seja, profissionais de saúde, familiares ou amigos que ajudam alguém em grande fragilidade a morrer, aplicando-lhe um produto letal ou assistindo-o quando o próprio doente pretende suicidar-se.
É verdade que a vida coloca algumas pessoas em situações tais que elas desejam morrer. Acontece frequentemente com os idosos, quando pensam que já fizeram tudo o que podiam e que presentemente só estão a “dar trabalho” a outros. Será que, em vez de aliviar os sofrimentos destas pessoas, de as valorizar e ajudar a terem gosto em viver, os devemos ajudar a morrer, conforme o desejo e a disponibilidade que parecem manifestar? Em vez de compaixão e solidariedade, como alguns defendem, não seria antes um ato cruel e desumano? Outros há que, não tendo muita idade, sofrem de doenças penosas prolongadas e sem perspetivas de melhoras. Em tais circunstâncias, há quem deseje e peça mesmo a morte, não a Deus, em quem porventura não acreditam ou de quem nada esperam para aliviar o próprio sofrimento, mas aos familiares e aos profissionais de saúde. É para estas situações, ao que parece, que a maioria dos deputados aprovou a lei da eutanásia, da “doce morte” provocada. Com esta lei avança-se com mais um motivo legal para dar a morte a alguém. E aí estão os “anjos da morte”, para acompanharem e darem a mão “amiga” a fim de libertarem a pessoa do seu sofrimento, antecipando deliberadamente o seu fim de vida.
Podem compreender-se as tentações de quem vive situações penosas de doença e da “compaixão” de quem aceita o pedido para a solução fatal. Invoca-se a liberdade da pessoa que sofre e o seu direito a escolher como quer viver ou morrer. Por outro lado, para justificar quem o ajuda, os argumentos são o respeito da liberdade da pessoa, a compaixão e a solidariedade. Podemos perguntar-nos se alguns destes argumentos não poderão valer para outras situações penosas da vida, quando se deixa de respeitar a vida como ela se apresenta na sua fragilidade. Não devemos mais apostar em ajudar a viver com menos sofrimento e mais amor, em vez de ajudar a morrer? Não será mais compaixão e humanismo rodear de amor, acompanhamento e cuidadosa assistência quem sofre? Para tornar mais aceitável a lei, evita-se a palavra eutanásia e fala-se antes de “morte assistida”. Mas não desejamos todos que qualquer doente em situação terminal possa ter uma “morte assistida”, ou sejam o acompanhamento e apoio de profissionais de saúde e de familiares e amigos? Não é o que procuram fazer os melhores hospitais e lares de idosos? Se a eutanásia é chamada “morte assistida” como deveria apelidar-se a dos demais cidadãos que sentem a sua vida terminar? Serão morte abandonadas, desprezadas, solitárias? Não seria de se investir mais e melhor na saúde dos cidadãos e no seu acompanhamento humano e técnico nas situações penosas de fim de vida em vez de provocar ou assistir à morte a pedido?
Parece-me que estamos a perverter o sentido da dignidade e dos direitos humanos. A liberdade individual e a vontade de cada um tornam-se valores absolutos, a que todos se devem curvar e servir. A vida social, as relações humanas, a capacidade de enfrentar as fragilidades e os limites, a dimensão espiritual e eterna da pessoa, todos estes valores parecem estar a enfraquecer e em risco de se perder. O sentido do verdadeiro humanismo, da responsabilidade, da solidariedade e mesmo do sofrimento está a desvirtuar-se por força daquilo a que o Papa Francisco chama a “cultura do descarte”. Até onde iremos?