Teatro e o sagrado

O ator e encenador Júlio Martin fala à Agência ECCLESIA da sua experiência com textos que aludem a temas religiosos

O ator e encenador Júlio Martin fala da sua experiência com textos que aludem a temas religiosos e diz à Agência ECCLESIA que seria um “desafio muito interessante” representar a peça ‘Os Mistérios da Missa’ ao ar livre, à semelhança do que sucedia no século XVII, quando o texto foi escrito.

 

Agência ECCLESIA (AE) – Como descreve “Os Mistérios da Missa”?

Júlio Martin (JM) – É um texto de grande beleza de Calderón de la Barca [1600-1681], um dos maiores dramaturgos do século de ouro espanhol. Os autos sacramentais, como este, eram representados por altura do dia do Corpo de Deus como uma grande celebração litúrgica de rua.

Trata-se de uma das peças de maior didatismo teatral daquele autor. Toda a simbologia da missa é ali revelada: a maneira como a liturgia é construída, a sua narrativa e os seus momentos. Ele transforma a liturgia numa poética de relações e sentidos, fazendo-nos percorrer a eucaristia através de dois personagens que acompanham toda a peça: a Ignorância e a Sabedoria. A primeira, que somos todos nós, é alguém que quer compreender o significado dos gestos e palavras da celebração; o seu encontro com a segunda conduz os espectadores ao longo da missa.

A peça evoca quase toda a história da humanidade e do cristianismo. Começa com a expulsão de Adão do Paraíso, um quadro que representa o Homem expulso de uma realidade ideal e bela, que é a proximidade com Deus, e que depois de se arrepender quer restabelecer essa relação com o divino. A partir daí surgem os vários personagens, como Moisés, Saulo e a sua conversão em Paulo, até culminar com o próprio Jesus Cristo.

É uma peça muito bem construída, com tensão dramática, mas sempre numa beleza poética muito grande.

Quisemos manter o grau de proximidade com o público, que existia à época em que o espetáculo era representado na rua, através da transposição para o interior de um templo. Temos sempre representado “Os Mistérios da Missa” em igrejas com uma dimensão de intimidade, como é o caso do Convento dos Cardaes [Lisboa], um espaço belíssimo onde é possível as pessoas sentirem o olhar e a respiração dos atores, que vão circulando entre os espectadores.

Os dois músicos que tocam violino e violoncelo ao vivo também ajudam a criar um ambiente muito belo de grande celebração e espiritualidade.

 

AE – O que é um auto sacramental?

JM – Os autos sacramentais são muito próprios da dramaturgia espanhola, sobretudo em Calderón de la Barca. Tratam-se de representações teatrais cujo conteúdo tem sempre a ver com personagens bíblicas ou com momentos particulares que se querem celebrar. O dia do Corpo de Deus era o grande momento de representação, numa enorme festa de rua marcada por uma vivência muito popular, artística e espiritual.

 

AE – Seria possível e pertinente o regresso às praças de “Os Mistérios da Missa”?

JM – É um desafio, sem dúvida. Penso que se poderia concretizar, obviamente com outras condições técnicas de audição e visibilidade, que hoje em dia são perfeitamente possíveis de obter. Acredito que o teatro pode e deve estar presente no meio da cidade, recriando e adaptando aos nossos tempos o modelo do auto sacramental.

É possível recriar o clima que se vivia no século XVII, bastando para isso encontrar o local adequado – uma praça e um percurso – e integrar mais pessoas, como se fazia originalmente. Estes autos sacramentais incluíam muita gente, desde músicos a bailarinos, e o texto continha já todos estes elementos. Quando o cortejo parava, as pessoas ouviam e viam a representação, mas pelo meio, enquanto se deslocavam de uma rua para outra, decorriam cantares e danças que permitiam a participação de toda a gente.

 

AE – Seria adequado fazer uma procissão do Corpo de Deus com este auto?

JM – Não propriamente integrado na procissão, que tem uma simbólica própria. Mas nesse dia seria possível apresentar um auto sacramental, à semelhança do que é feito em muitos países, nomeadamente Inglaterra e França, onde há uma tradição muito viva de exibição destas representações sacras no meio da rua, em cima de camiões e carroças. O cortejo com os vários quadros desloca-se ao longo das artérias, detém-se em determinados locais para as pessoas assistirem e converge para uma praça onde decorre o final.

São momentos muito especiais porque marcam os tempos litúrgicos com o cariz cultural e artístico, que nos diz muito atualmente. Podemos manter a solenidade e a sacralidade destas representações teatrais num espaço público. O que é preciso é criar condições para isso.

 

AE – Era um desafio que gostava de assumir?

JM – Claro que sim. No ambiente de vivência cristã de partilha e oração que experimentamos no Teatro do Ourives falamos muito em trazer à contemporaneidade toda a riqueza de outra linguagem e de outra forma de estar no mundo. E também queremos dar esperança. Para nós, a arte e o teatro passam por dar esperança, algo que é muito importante sobretudo nestes momentos que estamos a viver.

 

AE – O texto da versão agora apresentada é fiel ao original?

JM – A obra de Calderón de la Barca é um texto barroco, feito em verso e um pouco mais longo. Fizemos uma adaptação não só da estrutura – a peça tem a duração de uma hora e não é em verso – como também de algumas personagens, já que o original era muito marcado pela época.

Há elementos permanentes e intemporais, mas há outros que se referem a aspetos específicos, pelo que tentamos aproximar o texto da nossa atualidade. Um caso concreto: as personagens do Romano e do Judeu, que fazem um contraponto e dão tensão dramática à peça ao oporem-se ao cristianismo, foram transformadas no Fariseu e no Paganismo. O primeiro é aquele que não está aberto a outras perspetivas, enquanto que o segundo representa outro entendimento do mundo. Ambos acabam por ser interpelados pela boa nova.

À exceção de pequenas modificações mantivemos o essencial e o espírito da peça permanece perfeitamente.

 

AE – Quantos atores entram em palco?

JM – Sete, para cerca de dez personagens. E temos duas crianças, filhas de um dos atores, que fazem um momento muito belo e comovente durante a cena da conversão de Saulo.

 

AE – Qual é a cena que lhe é mais significativa?

JM – É difícil escolher porque todas representam o empenho e a dedicação de cada um dos atores a atrizes. E como a peça demora apenas uma hora, flui e vê-se muito bem como um todo.

Há momentos muito belos: ao início, quando a Ignorância se encontra pela primeira vez com a Sabedoria; a entrada de Adão por entre o público; a aparição de Moisés e João…

E depois há uma relação muito íntima com a música. Os músicos tocam algumas peças com partitura, mas há ocasiões em que também improvisam sobre o trabalho dos atores. Todos têm de estar muito atentos para que esse casamento funcione bem.

Um dos instantes em que isso acontece é o da conversão de Saulo. É uma cena bela porque estão quase todos os personagens em palco a testemunhar esse acontecimento. E também porque é a única ocasião em que surgem as duas crianças, que rodam, cantam e dançam à volta dele, dizendo “Saulo, Saulo, porque me persegues?”. São uma presença muito especial e marcam essa passagem fundamental de Saulo em Paulo.

Realço também o quadro em que se representa o núcleo da celebração eucarística, bem como a forma como o Fariseu e o Paganismo são interpelados.

 

AE – Os atores e músicos são amadores?

JM – A maior parte dos atores tem formação profissional, e alguns, como é o caso do José Nogueira Ramos e do José Simão, concluíram o curso superior de Teatro e atuaram profissionalmente durante muitos anos. Os músicos também terminaram o Conservatório.

Temos também atores que vieram do teatro universitário e de outras instituições, além daqueles que começaram connosco a sua caminhada teatral.

Ninguém da equipa vive exclusivamente da atividade artística. Alguns atores dedicaram-se ao Vale de Acór, que é a mãe deste projeto do Teatro do Ourives. É uma associação com sede em Almada, que trabalha na recuperação de pessoas com problemas de droga e álcool, dirigida pelo padre Pedro Quintela, um homem de grande paixão pelo teatro e de grande cultura.

Antes de o Teatro do Ourives ser constituído havia já um percurso teatral de treze anos. Estes atores, quando foram trabalhar para o Vale de Acór, levaram também a sua experiência, criando pequenos espetáculos, em que eu, pontualmente, também colaborei.

O ano passado, por ocasião da comemoração do Ano Sacerdotal [que a Igreja católica assinalou entre 2010 e 2011], a experiência deles e a nossa relação de amizade confluiu na vontade de dar outra forma e estrutura às apresentações teatrais.

Foi no decorrer dos ensaios de “Os Mistérios da Missa” [em 2010] que surgiu a ideia de criar o “Teatro do Ourives”. O nome é uma homenagem ao Papa João Paulo II, um grande apaixonado pelo teatro e ele próprio ator e dramaturgo, e a uma das suas peças mais conhecidas, “A Loja do Ourives”. Também gostámos muito da simbologia da profissão, executada por quem dedica o seu cuidado ao trabalho com metais delicados, preciosos e belos, como são também as pessoas, palavras e gestos com que nós trabalhamos no teatro. E o ourives, obviamente, também é Deus que nos trabalha.

O nome revela igualmente uma relação com a história do teatro português através de Gil Vicente. Ninguém sabe ao certo, mas há quem diga que ele poderia ter sido ourives.

“Os Mistérios da Missa” são uma reposição do espetáculo que estreou o ano passado, por altura do fim do Ano Sacerdotal. Essas atuações foram para nós uma surpresa belíssima porque tivemos de fazer mais apresentações do que as que estavam previstas. E justamente porque correu tão bem, achámos importante voltar a fazê-lo este ano, também para marcar a Quaresma.

 

AE – A peça vai ser apresentada noutros locais além de Lisboa?

JM – Para já vamos fazer esta carreira no Convento dos Cardaes até 17 de abril, domingo de ramos, de quinta a sábado às 21h30 e ao domingo pelas 18h00. Têm surgido convites, nomeadamente do Porto e Braga, bem como de outras localidades. Agora é tudo uma questão de nos deslocarmos para fazer o espetáculo, que é muito ágil em termos de produção. Nós adaptamo-nos ao espaço existente, dado que não temos cenários e os figurinos são simples, pelo que é praticamente só o trabalho dos atores e dos músicos. Tudo se resume a conciliar disponibilidades e a conseguir um mínimo de condições para apresentar a peça.

RM

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