Summorum Pontificum: sem regressos ao passado

Motu Proprio de Bento XVI sobre o antigo rito entra em vigor esta Sexta-feira e é acolhido com serenidade em Portugal O Motu Proprio de Bento XVI sobre a Liturgia Romana anterior à reforma do Concílio Vaticano II entra em vigor a partir desta Sexta-feira, 14 de Setembro. O documento aprova a utilização universal do Missal promulgado pelo Beato João XXIII em 1962, com o Rito de São Pio V, utilizado na Igreja durante séculos. O Rito de São Pio V, que a Igreja Católica usava até à reforma litúrgica de 1970 (com algumas modificações, a últimas das quais datada de 23 de Junho de 1962) foi substituído pela Liturgia do “Novus Ordo” (Novo Ordinário) aprovada como resultado da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Com o novo documento, Bento XVI estende a toda a Igreja de Rito Latino a possibilidade de celebrar a Missa e os Sacramentos segundo livros litúrgicos promulgados antes do Concílio. Esta aprovação universal significa que a Missa do antigo Rito poderá ser celebrada livremente em todo mundo, pelos sacerdotes que assim o desejarem, sem necessidade de autorização hierárquica (licença ou indulto) de um Bispo. Os livros litúrgicos redigidos e promulgados após o Concílio continuarão, contudo, a constituir a forma ordinária e habitual do Rito Romano. D. António Bessa Taipa, presidente da Comissão Episcopal da Liturgia no nosso país, refere à Agência ECCLESIA que é necessário acolher com “serenidade” todas estas mudanças, criticando as reacções “despropositadas” que se seguiram à publicação do Motu Proprio (documento legislativo da iniciativa do Papa). “Em primeiro lugar, há que lembrar que a celebração anterior não foi nunca proibida. Por outro lado, o gesto do Santo Padre vai no sentido de manter e defender a comunhão e a unidade na Igreja”, explica. Este responsável não esconde a sua “admiração” pela “coragem” do Papa em tomar esta medida e mostra-se grato pelo gesto do Papa que enviou uma carta aos Bispos onde justificava a sua atitude e a pedir-lhes que “comuniquem os resultados do que vai acontecer, inclusivamente”. D. António Taipa admite que estas novas disposições possam ser “aproveitadas por muitos para regredir naquilo a que se chegou depois do Concílio”, mas manifesta a confiança de que o Papa “terá força suficiente para saber até onde deverá ir”. O presidente da Comissão Episcopal da Liturgia não vê no documento de Bento XVI nenhum retrocesso na vida da Igreja, porque “a Igreja alberga muitas mentalidades, sensibilidades muito diferenciadas e é preciso manter a comunhão do diferente”. Quanto à reimpressão dos livros litúrgicos necessários para a celebração no rito antigo, o Bispo Auxiliar do Porto não regista nenhum pedido nesse sentido e mostra-se mais preocupado com a tradução do novo Missal, “que já deveria estar feita”. As razões do Papa Reconciliação: esta é a palavra chave e a razão positiva apresentada pelo Papa para a “liberalização” do Missal Romano de 1962. “Trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja. Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava a nascer, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade”, refere o Papa, na carta que envia aos Bispos de todo o mundo para explicar o Motu Proprio publicado a 7 de Julho. O objectivo é, portanto, “realizar todos os esforços para que todos aqueles que nutrem verdadeiramente o desejo da unidade tenham possibilidades de permanecer nesta unidade ou de encontrá-la de novo”. O princípio fundamental é que a liturgia romana, mantendo um só rito, disporá de agora em diante de duas formas (“usus”). Desde o seu primeiro ponto, o documento de Bento XVI estabelece claramente que o Missal Romano promulgado por Paulo VI em 1970 é “a expressão ordinária” da Igreja Católica de Rito Latino (o mais difundido em todo o mundo) e o Missal de 1962 uma “forma extraordinária” de celebração, não criando divisões. As celebrações no Rito de São Pio V podem ter lugar em dias festivos, Domingos e durante a semana, podendo ainda ser permitida em circunstâncias particulares, como o matrimónio, funerais ou peregrinações. O Motu proprio prevê também a possibilidade de usar o Ritual anterior para os sacramentos do Baptismo, da Penitência, do Matrimónio e da Unção dos Enfermos (artigo 9.º). Permanecem, porém, válidas todas as prescrições das Conferências Episcopais sobre a preparação requeridas para estes sacramentos. Paróquias do antigo Rito O Motu proprio permite a quem o desejar o uso da liturgia anterior, mas não pretende impor a ninguém essa forma extraordinária. Entre as novas regras estabelecidas, o artigo 5.º aborda, em particular, a realidade das paróquias, dispondo que onde existir de forma estável um grupo de fiéis que adere à antiga tradição litúrgica, o pároco deve acolher de bom grado o seu pedido para a Missa segundo o rito do Missal de 1962. Os responsáveis devem procurar harmonizar o bem destes fiéis com o “cuidado ordinário” da paróquia, sob a orientação do Bispo local, evitando qualquer discórdia e favorecendo a unidade. O Bispo do lugar pode erigir uma paróquia pessoal, caso haja um número consistente de fiéis que desejam seguir a liturgia anterior (artigo 10.º). A situação está prevista no cânone 518 do Código de Direito Canónico, onde se lê que “onde for conveniente” podem constituir-se paróquias pessoais “determinadas em razão do rito”, como neste caso. Na carta que envia aos Bispos, o Papa procura afastar “o temor de que uma possibilidade mais ampla do uso do Missal de 1962 levasse a desordens ou até a divisões nas comunidades paroquiais”. “O uso do Missal antigo pressupõe um certo grau de formação litúrgica e o conhecimento da língua latina; e quer uma quer outro não é muito frequente encontrá-los. Por estes pressupostos concretos, já se vê claramente que o novo Missal permanecerá, certamente, a Forma ordinária do Rito Romano, não só porque o diz a normativa jurídica, mas também por causa da situação real em que se encontram as comunidades de fiéis”, explica. Quando um grupo de fiéis que queira celebrar no antigo Rito não vê o seu pedido satisfeito por parte do pároco, o artigo 7.º estabelece que disso seja informado o Bispo diocesano, que é “vivamente” recomendado a responder ao seu desejo. Quando tal não seja possível, a questão deverá ser referia à Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, criada por João Paulo II em 1988 e que Bento XVI quer ver mais envolvida na promoção dos valores da antiga Liturgia. A “Ecclesia Dei” é uma Comissão que tem objectivo “facilitar a plena comunhão eclesial” dos fiéis ligados à Fraternidade fundada por Monsenhor Lefebvre, “conservando as suas tradições espirituais e litúrgicas”. Criada por João Paulo II, em 1988, a Comissão quer ser um sinal de comunhão para todos os fiéis católicos que se sentem vinculados a algumas precedentes formas litúrgicas e disciplinares da tradição latina, procurando adoptar “as medidas necessárias para garantir o respeito das suas justas aspirações”. Os últimos artigos do “Summorum Pontificum” esclarecem que a Comissão continua a exercer a sua missão. Enquanto Cardeal, o actual Papa foi membro da Comissão Pontifícia “Ecclesia Dei” e deseja que a mesma “se transforme num organismo da Santa Sé com a finalidade própria de conservar e manter a liturgia latina tradicional”, segundo revelou o Cardeal Castrillón Hoyos, actual presidente da Comissão. Segundo este responsável, existe hoje em dia um “renovado interesse” pela liturgia que esteve em vigor desde o Concílio de Trento (Missal de Pio V – 1570) até ao novo ritual pós-conciliar (Novus Ordo Missae – 1970). “Por esta liturgia, que nunca foi abolida e que é considerada um tesouro, existe hoje um novo e renovado interesse. Também por esta razão, o Santo Padre pensa que chegou o tempo de facilitar, como já o tinha desejado a primeira Comissão Cardinalícia, em 1986, o acesso a esta liturgia fazendo dela uma forma extraordinária do único rito Romano”, referiu o Cardeal Castrillón Hoyos, aquando da sua passagem pela Conferência de Aparecida, em Maio deste ano. Bento XVI procura apresentar todas estas decisões em continuidade com a Tradição, ligando-se às reformas dos seus predecessores, de São Gregório Magno a São Pio V, de Clemente VIII a Urbano VIII, de São Pio X a Bento XV, passando por Pio XII, o Beato João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. Missa em latim? As características mais facilmente reconhecíveis da chamada Missa Tridentina são o uso do latim como língua litúrgica assim como a posição do sacerdote, de costas para a assembleia. Limitar a celebração a estes dados, contudo, seria amplamente redutor. A liturgia segundo os livros de 1962 celebra-se em latim, mas as leituras podem ser proclamadas em língua vernácula. Para favorecer uma participação activa, os fiéis são convidados a recitar juntamente com o celebrante diversas partes do Ordinário da Missa (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei), as quais deveriam ser de preferência cantadas. Recomenda-se aos fiéis que sigam as orações da Missa com um missal bilingue. As duas formas da liturgia seguem dois Calendários diversos, diferentes na data de algumas festas secundárias, e têm dois Leccionários diversos. Tal diferença não deveria criar grandes dificuldades: também o rito ambrosiano (da diocese de Milão), por exemplo, tem um calendário e um leccionário próprios. A propósito do Missal de 1962, em latim, recorda-se que se trata de um Missal “plenário”, “integral”, que contém também as leituras das celebrações. Prevê uma só Oração Eucarística (o Cânone Romano, I Oração Eucarística do Missal conciliar). Boa parte das orações (mesmo da Oração Eucarística) são recitadas pelo celebrante em voz baixa. No final da Missa, recita-se o prólogo do Evangelho segundo S. João. O Missal de 1962 não prevê a concelebração. Nada diz sobre a orientação do altar e a posição do celebrante, voltado ou não para a assembleia. A Missa, a partir do século XIII, costumava ser dividida em duas partes: “missa dos catecúmenos” e “missa dos fiéis”; eram admitidos à primeira parte os que aspiravam a se tornar cristãos e, uma vez que estavam ainda na fase de preparação doutrinal, eram excluídos do sacrifício eucarístico e participavam somente na liturgia da Palavra, com claro valor catequético; na segunda parte participavam todos os crentes. O altar, colocado no cimo de alguns degraus, significava a subida ao Gólgota; por isso, as orações de introdução ao sacrifício eram recitadas pelo celebrante aos pés dos degraus: remonta ao século IX a recitação do salmo 42, “Iudica me, Deus”, com o Glória e o Confiteor, cuja fórmula é do século XII, o sacerdote sobe ao altar, que incensa com três voltas, se a missa é solene. A recitação do Credo, depois da leitura do Evangelho e da homilia, é introduzida no século VI no Oriente e no século XI no rito latino. A segunda parte da Missa tinha início com a apresentação dos dones; seguiam-se orações, chamadas “pequeno cânone” que, no rito latino, não são anteriores ao século XIV: “Suscipe”, “Sancte Pater”, talvez de origem galicana, e o “Deus qui humanae substantiae”, antiga oração da liturgia natalícia romana; feita a oferta, procedia-se a uma nova incensação do altar, seguida do Lavabo, ou lavagem das mãos, da “Oratio super oblata secreta” e, finalmente, do Prefácio, que é a introdução à oração eucarística por excelência, ou seja, o “cânone” ou “canon actionis”. O Prefácio começa com um diálogo entre celebrante e fiéis, continua com uma oração de agradecimento e termina com o Triságio, ou Sanctus. Tem assim início o Cânone, fórmula usada desde o século VII, com a consagração das duas espécies eucarísticas e sua dupla elevação, existente desde o tempo da heresia de Berengário; todas as orações seguintes, sempre expressas em língua latina, culminam com o doxologia “Per ipsum, cum ipso, in ipsum”. Com o Pater Noster, tem início a parte da Comunhão: primeiro a fracção da hóstia, o antiquíssimo Agnus Dei, a oração e o beijo da paz posteriores ao ano 1000, e a comunhão do sacerdote. Durante a comunhão dos fiéis, cantava-se um salmo; restam vestígios disso na actual oração da Communio. A oração do Postcommunio concluía a celebração, às vezes, com a “Oratio supra populum”; depois, o “Ite, missa est” fazia a despedida da assembleia. O Placeat com a bênção são posteriores ao ano 1000, e o último Evangelho (leitura do Prólogo de João) era de devoção particular até o século XV. O Concílio e o latim O rito litúrgico resultante da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II institui uma nova forma de celebrar a missa que revoga, não o uso do latim, mas o uso do anterior Rito de S. Pio V. A constituição conciliar sobre a Liturgia, Sacrossanctum Concilium, declarou o seguinte sobre a língua latina: (36.) § 1. Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular. § 2. Dado, porém, que não raramente o uso da língua vulgar pode revestir-se de grande utilidade para o povo, quer na administração dos sacramentos, quer em outras partes da Liturgia, poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo, especialmente nas leituras e admonições, em algumas orações e cantos, segundo as normas estabelecidas para cada caso nos capítulos seguintes. § 3. Observando estas normas, pertence à competente autoridade eclesiástica territorial, (…) consultados, se for o caso, os Bispos das regiões limítrofes da mesma língua, decidir acerca do uso e extensão da língua vernácula. Tais decisões deverão ser aprovadas ou confirmadas pela Sé Apostólica. § 4. A tradução do texto latino em língua vulgar para uso na Liturgia, deve ser aprovada pela autoridade eclesiástica territorial competente, acima mencionada. (54.) À língua vernácula pode dar-se, nas missas celebradas com o povo, um lugar conveniente, sobretudo nas leituras e na «oração comum» e, segundo as diversas circunstâncias dos lugares, nas partes que pertencem ao povo, conforme o estabelecido no art. 36 desta Constituição. Notícias relacionadas Motu Proprio Summorum Pontificum Carta do Papa aos Bispos de todo o mundo sobre o uso da Liturgia Romana anterior à reforma realizada em 1970

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