Sociedade: Crescer entre a religião muçulmana e cristã e aprender o caminho da reconciliação – Fatu Banora

Marcada pela prática da mutilação genital feminina, Fatu Banora «colocou palavras» na sua história e hoje é embaixadora na luta contra uma tradição que nada tem a ver com religião

Foto: Agência ECCLESIA/LS

Lisboa, 09 nov 2022 (Ecclesia) – Fatu Banora, jovem guineense de 22 anos, cresceu entre a tradição muçulmana e foi vítima da prática da mutilação genital feminina (MGF), mas hoje olha para si como uma sobrevivente com uma voz ao serviço dos outros.

Fatu olhava para a prática, uma tradição que continua a ser um tema tabu dentro da cultura guineense, como “dolorosa”, até que na adolescência as questões da auto-estima e do corpo em desenvolvimento abriram “um baú que tinha fechado”, recorda à Agência ECCLESIA.

“Confrontei-me nessa altura porque comecei a sentir, na adolescência, o impacto e as consequências da MGF. Na altura eu associava: eu sou muçulmana e na Guiné a comunidade mais afetada pela MGF é a comunidade muçulmana; então se eu não tivesse nascido muçulmana, nada disto teria acontecido. Era uma altura de muitos porquês sem resposta que me levaram a confundir tudo, a culpar quem não tinha culpa e a ter atitudes que não me levavam a lado nenhum, só pioravam”, acrescenta.

Hoje Fatu Banora é embaixadora contra a MGF: “Eu fiz o caminho da vítima para a sobrevivente. Foi dos caminhos mais bonitos que fiz. Transformar a raiva para perceber como posso resolver os problemas, foi das decisões mais importantes e importantes que tomei”, assinala.

Perto dos 18 anos, quando começava a “colocar palavras” na sua história, a jovem conversou com o pai sobre a MGF.

Foi uma conversa muito bonita. Foi a primeira vez que falamos sobre isto. Voltei atrás em toda a história: durante muito tempo coloquei dentro de um baú e fechei, mas mexeu muito comigo durante o meu crescimento, causando muita rebeldia. Tive a capacidade de dizer ao meu pai que não o culpava. Houve momentos em que os culpei, a ele e à minha mãe, mas se fui vítima desta prática os meus pais também foram, e os pais de outras meninas foram e são vítimas porque estão inseridos numa cultura que só lhe mostra aquilo”.

Fatu Banora cresceu nos bairros de Bissau, entre a vida comunitária onde “todos eram tios” e se “entrava em casa da vizinha para pedir azeite ou sal”, e as tradições que a cultura continua a perpetuar, tendo só em Portugal, durante a adolescência, conseguido colocar palavras na sua história.

Aos oito anos, Fatu veio para Portugal, acompanhada do pai, ao abrigo dos protocolos de saúde com a Guiné-bissau, com a suspeita de um problema cardíaco que se veio a despistar, e aqui ficou a estudar.

“A minha família era muito religiosa, é muito praticante. Vim para Portugal e fui viver para casa de uma tia da minha mãe e ela faz parte da minha família que não é muçulmana, é cristã. Acabei por perder as práticas que na Guiné vivia: ir à mesquita, ir à escola corânica depois da escola, aprender a interpretar o Al Corão, rezar e participar nas festas religiosas”, recorda.

Apesar de se sentir ainda “em busca” e em reconciliação com a religião muçulmana, Fatu entende que a religião “oferece uma visão e forma de estar na vida”.

“Faz-me sentido a religião muçulmana porque os meus pais praticam. Eu estou na busca porque tenho de resolver questões. Isso pesa na minha busca, porque não me consigo ligar totalmente à prática muçulmana, tenho questões a resolver”, conta.

Junto da sua família, em Portugal, Fatu Banora envolveu-se com os Jovens Sem Fronteiras, participando em atividades do movimento.

“Nunca lhes cheguei a dizer o quão importante foram no meu percurso, mas foram pessoas a quem eu olhava e dizia, eu quero seu assim. Fui uma privilegiada por ter tido olhares em mim. Sou muito grata por isso. Embora tenha muitas questões sobre a religião, eu acredito muito em Deus. Não sei que nome dar e de que forma praticar, mas acredito muito em Deus e que Ele está presente em todos os momentos da minha vida. Ele põe pessoas no meu caminho que me vão ajudando”, reconhece.

Fatu Banora fez o percurso de formação da Academia de Líderes Ubuntu, baseado num processo de auto conhecimento, confiança, resiliência empatia, serviço, que a ajudou a encontrar um propósito e sentido para a sua vida: “Quando falo em reconciliação, em perdão, em olhar para trás e recontar, eu penso na Academia”.

A jovem de 22 anos foi a primeira galardoada com o prémio António Brandão de Vasconcelos, uma bolsa que permite a jovens líderes Ubuntu continuar os seus estudos superiores, no caso de Fatu, estudar psicologia para ter ferramentas para entender “melhor as pessoas” e estar ao serviço da comunidade.

A conversa com Fatu Banora pode ser acompanhada esta noite no programa ECCLESIA, emitido na Antena1, pouco depois da meia-noite, ficando disponível em formato podcast.

LS

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