O novo presidente da Conferência Episcopal aponta para um trabalho em rede na Igreja Católica em Portugal, diz que «bispos sem trabalho não existem», recorda as suas raízes na Ilha da Madeira e os caminhos abertos pelo «mar imenso» que partiu do desejo de ser missionário
(Entrevista conduzida por Paulo Rocha)
Agência Ecclesia – D. José Ornelas foi missionário antes de ser padre, pertenceu a uma congregação missionária, queria ser missionário depois de ter sido responsável pelos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) em todo o mundo. Esta responsabilidade de ser presidente da Conferência Episcopal Portuguesa que missão é?
D. José Ornelas – Ser enviado não é uma missão que se escolhe! É a que vai sendo necessária e que se recebe.
AE – E foi nesse espírito que a aceitou?
OC – Eu não escolhi ser bispo e, sendo bispo de Setúbal, é inerente a essa função ser parte da Igreja em Portugal e estar ao seu serviço para o que for preciso. Dessa responsabilidade faz parte ter o cuidado, juntamente com os outros bispos, da Igreja em Portugal.
Bispos sem trabalho não existem. Todos tinham as mesmas objeções que eu tenho: uma diocese para cuidar, todos bem ocupados e uma missão destas, que agora é proposta, tem de se equacionar juntamente com outras responsabilidades e é isso que vamos fazer.
AE – Perspetiva-se um trabalho a dobrar? Em que consiste ser presidente da Conferência Episcopal?
OC – Tenho de aprender… Não sei!
AE – Mas há ocupações específicas da Conferência Episcopal…?
OC – É evidente que há! Há ocupações, há preocupações, atenções especiais a ter que se vão conjugar com as que agora tenho.
Antes de ser bispo, eu sabia o que era ser bispo, sabia tudo! Depois quando fui eleito bispo de Setúbal, perdi as certezas e comecei a aprender…
AE – E foi muito diferente do que tinha pensado?
OC – Não, foi real. Acho que se não tivermos algum sonho quando começamos uma missão, não é bom. Mas também levar as perspetivas todas já feitas é muito mau!
Lembro-me que, quando cheguei a Setúbal, chegou também a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima, na preparação do jubileu. Chegou à Sé no mesmo dia em que eu fui ordenado. E quando começamos a programar, o primeiro pensamento foi “vai ser uma grande confusão”. Mas depois comecei a pensar: não, é uma grandíssima oportunidade.
Nos 15 dias seguintes em que a Imagem Peregrina ficou na diocese, todas as noites acompanhei a imagem numa procissão. Fiz mais quilómetros de procissão nesses dias do que tinha feito na vida toda.
AE – E ficou a conhecer a diocese…
OC – “With Mary, by night…!” Porque era sempre à noite! De dia havia mais coisas para fazer.
Eu ia pondo os pés no chão e dizia: “Põe os pés nesta terra… Põe os pés nesta terra!”
A própria ideia de missão é essa: não é uma questão simplesmente de geografia, mas tem de ser pôr os pés no terreno onde se está! A grande mensagem de missão da Igreja é ir ao encontro do mundo, onde ele está e como está.
A Igreja foi mudando com a sua missão: nasceu dentro de um ambiente judaico e, quando começa a confrontar-se com aquilo que não é judaico, tem de mudar o seu “cartão de identidade”. Não aquilo que crê ou aquilo que leva, mas a sua forma de estar: vai fixar residência pelo mundo inteiro, o que significa assumir as cores e os critérios do lugar e amassá-los com o fundamento do Evangelho.
Estudos bíblicos na presidência da CEP
AE – E esse é um perfil que vai levar para a presidência da CEP, tanto mais que o vice-presidente, D. Virgílio Antunes, também é da área da Bíblia como o D. José Ornelas?
OC – Isso é muito interessante porque, quando se diz que é preciso adaptar, não significa que não temos uma identidade a preservar. Temos! As nossas raízes são bem claras.
O Papa diz que o cristão é um homem de memória e isso significa que nós vivemos assentes em realidades que são fundamentais ao ser humano: a centralidade de Cristo no meio da História. Esse é sempre um ponto de retorno, de raízes. Mas essas raízes não são simplesmente um regresso ao passado, antes se refazem constantemente. E isso, na Igreja em Portugal, não é algo de novo! A Igreja esteve sempre em contacto com o mundo.
Eu venho da Madeira, que celebrou há pouco os 500 anos da diocese que se fez por todo o mundo. E é como o ser madeirense: de raiz, de afetos e de tudo… Mas a ilha é um ponto de partida para o mar imenso! Há gente que fica aflita quando chega à Madeira porque vê água por todo o lado. Nós vemos caminhos que se abrem para todo o mundo, sem muros!
A fé é algo assim: é um caminho donde se parte, que se leva no coração e se conjuga e se amassa com tantas coisas. E é por isso que criamos mestiçagem em todo o mundo.
AE – A fundamentação bíblica é o ponto de partida…
OC – É, porque tudo começa na Palavra, onde é preciso voltar nos momentos de grande mudança, como os que vivemos agora. É fundamental saber a identidade que se tem, não como algo de intocável e de regresso saudosista, mas como uma riqueza dinâmica que se recria constantemente. Só os ideais débeis é que têm medo e se fecham.
O espírito de seita que se vive em determinadas realidades da Igreja é precisamente isso: o medo do desconhecido, o medo do novo e o fechar-se em realidades fetichistas do passado que não têm coragem de se amassar com o mundo como ele se apresenta. Isso é um regresso bafiento ao passado! E a Palavra de Deus não tem nada de bafiento!
AE – Um regresso bafiento que o presidente da CEP rejeita por completo…
OC – Não se rejeita! Isso faz parte…
Uma pessoa que gosta muito da sua terra, que me fala da Madeira, de Portugal… Eu gosto muito do meu país, mas se ficar sempre nessa realidade estou a limitar o país e a limitar a Madeira, porque o espírito donde a gente sai é o espírito de nos recriarmos constantemente.
O berço e o mundo da Vida Religiosa
AE – Para além desta fundamentação na Bíblia, no percurso de vida de D. José Ornelas, há uma outra que o marcou profundamente: a pertença a uma congregação religiosa e o facto de ter sido o superior-geral, o responsável dos dehonianos em todo o mundo. Há uma dimensão internacional no seu percurso de vida que ajuda a olhar o mundo, a globalização e a responder aos desafios que se nos colocam e não são só da nossa porta, mas de todo o mundo, como nos mostra esta pandemia?
OC – Isso foi uma das coisas que aprendi ao entrar na congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus.
Eu já tinha dois irmãos no seminário, quando era criança, nos meus 10 anos, e os missionários dehonianos passaram na minha escola. Eu disse que queria ir para o seminário, mas queria ficar na Madeira porque gostava muito da Madeira.
E foi no seminário, na Igreja madeirense que comecei a ler as revistas missionárias – Audácia, Além-Mar, etc – e comecei a pensar que esse era o meu caminho e está muito ligado ao sonho de todos os madeirenses: não abandonar a ilha para fugir, mas meter-se ao mar!
Foi no local, na ilha, que eu aprendi a conhecer o mundo e a desejar conhecer o mundo. Lembro-me do meu primeiro encontro com alguns que já estavam na congregação que diziam: uma das coisas interessantes que tem a Congregação é que nunca estamos num lugar só. E como gostava de Geografia e de História, as coisas aliaram-se…
AE – E depois experimentou-o à máxima escala…
OC – Sim.
E também não existe para mim uma contradição: eu tenho um irmão padre da Diocese do Funchal, o cónego Agostinho, de quem tive todo o apoio quando disse que queria ser missionário. E o discernimento foi muito simples: estes eram os que estavam mais à mão, que tinham chegado à Madeira há poucos anos.
O meu sonho de ser missionário foi sempre constante e continua a ser.
AE – Também na Diocese de Setúbal e agora como presidente da CEP?
OC – Evidentemente!
Para ser honesto, eu não escolhi a Congregação do Sagrado Coração de Jesus por causa do seu carisma… Eu só sabia que eram missionários e que queria ser missionário. Não foi uma escolha pela Vida Religiosa, foi uma escolha por ser missionário.
O ser missionário em comunidade fascinou-me à medida que fui conhecendo. O fascínio da vida é assim; tem a ver com a realidade, com o pôr os pés na realidade e saber como aí vive o sonho que se tem. A congregação passou a ser uma das pátrias que me caraterizam.
AE – O conhecimento da Igreja Católica em todo o mundo que mais valia constitui para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa?
OC – Antes de mais, um fator de grande admiração, por encontrar igrejas diferentes.
A experiência que eu fiz em Moçambique foi muito interessante. Quando fui para lá, em agosto de 1974 e estavam em curso os primeiros contactos com os guerrilheiros da Frelimo, fui visitar algumas bases no mato e entusiasmei-me muito com aquela revolução, assim como a revolução portuguesa de 74. Vivi a independência lá com uma grandíssima alegria e fui experimentando também o que se foi seguindo, que não foi tão simpático e acabou na guerra civil que durou 15 anos. Vivi aquele drama todo, não lá, mas cá, e lembro-me o que era o refazer o meu ser português. Quando fui para Moçambique já era muito crítico em relação ao regime e à situação das colónias, particularmente da guerra em África. Mas, viver esta realidade lá, ter de reinventar a história (porque em Moçambique estudava-se a mesma história, os mesmos rios e os mesmos caminhos de ferro que se estudavam aqui), e, quando eu falava da escravatura, sentia as cadeiras dos alunos estremecerem. Também nunca poupei nada, porque é muito importante viver a realidade, também a propósito das discussões de hoje sobre racismo…
AE – E é um desafio do presente…
OC – É um desafio de todos, que não se faz simplesmente com recriminações. Eu não me sinto culpado dos desajustes que se fizeram na História de Portugal. Mas sinto-me corresponsável por aquilo que foi a nossa história, no sentido em que assumo a História do meu país como me assumo a mim mesmo, como uma pessoa que se engana, que foi adaptando percursos e libertando-se dos próprios esquemas. E este país não precisa de ter vergonhas pelas asneiras do passado. Ai fê-las!…
AE – Mas também não precisa de tapar estátuas por causa disso…
OC – E não vou amputar as minhas pernas pelos passos mal dados! Tenho é de saber que lugar dou a essa realidade na construção da minha vida e para construir a vida que eu quero.
Ser presidente da CEP
AE – Há uma marca na Vida Religiosa que é a comunidade e na sua experiência de superior-geral de uma congregação, feita de contactos, de diálogo, de respeito pelas diferenças. Essa marca passará para o presidente da Conferência Episcopal?
OC – Devagar! Uma das coisas que disse quando cheguei a Setúbal foi que a experiência de governo, de 12 anos como superior geral, não serve. É um falso semelhante. Tem os mesmos valores, mas modos de ser diferente. Eu disse a mim mesmo: não vais transformar a diocese numa congregação religiosa.
AE – E o mesmo se aplica à Conferência Episcopal?
OC – À Conferência Episcopal, aplica-se mais ainda!
Falar de governo na Conferência Episcopal é completamente desajustado…
AE – Não é uma assembleia legislativa ou governativa?
OC – Tem faculdades de dar orientações, mas a tradição da Igreja é de igrejas locais, desafiadas a trabalhar em rede e em subsidiariedade. A Igreja vive na família, na paróquia, na diocese, em conjuntos de dioceses que caraterizam a Igreja num país. Mas é nas dioceses, em rede de comunhão através da figura do Papa, que se realiza a unidade da Igreja.
Os bispos são a expressão de cada igreja local. Encontrarem-se juntos é fundamental para realizar a unidade da Igreja, o que se chama a colegialidade, e é muito semelhante ao que existe na Vida Religiosa onde em qualquer nível de decisão há sempre um conselho, uma forma colegial de analisar as coisas. Depois, quem governa, atua!
A Conferência Episcopal é a reunião dos representantes das várias dioceses. Não tem um papel propriamente de governo, mas de coordenação da missão apostólica.
AE – E quando em causa está a identificação de uma voz para o diálogo entre a Igreja e a restante sociedade? É difícil que os vários setores da sociedade tenham 20 vozes de diálogo, de 20 dioceses… A Conferência Episcopal não tem de funcionar como voz de diálogo?
OC – Funciona e tem de funcionar cada vez melhor, nesse sentido! Trabalhamos em rede, como igrejas fraternas, que se juntam para serem a Igreja em Portugal, o contexto sociológico onde nós nos inserimos.
E as dioceses e o Vaticano: a CEP
AE – Falemos do papel das conferências episcopais: que sinal foi dado pelo Papa Francisco ao chamar delegados das conferências episcopais para a cimeira sobre a proteção de menores? E o que significa o facto do Papa ter confiado às conferências episcopais, quando assinalou os 50 anos da criação do Sínodo dos Bispos, um espaço de sinodalidade, uma instância intermédia entre o Vaticano e cada diocese? Que renovação pode estar em curso para dar uma nova configuração às conferência episcopais?
OC – Trata-se de uma forma inteligente de viver a eclesialidade. O Concílio Vaticano II veio dizer que o fundamental da Igreja não é uma estrutura piramidal de poder, mas uma estrutura circular. A grande imagem da Igreja é a que está no Evangelho: quando vão perguntar a Jesus onde está a sua irmã e os seus irmãos ele diz para olhar à sua volta (estrutura circular) e diz que as irmãs e os irmãos são os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática. E isto cria comunhão, que se tem de organizar. Mas no centro está Cristo.
Nós precisamos desta sinodalidade, de fazer caminhos juntos. E essa circularidade não anula a necessidade de estruturar.
Desde o início que a referência apostólica (os que “desde o princípio estiveram connosco”, como diz Pedro no momento de completar o grupo dos 12 com a eleição de Matias), é o que se perpetua nas dioceses na figura do bispo. Não é um princípio da autoridade, mas de testemunho. Porque a autoridade baseia no testemunho de Cristo, que reúne circularmente os irmãos e está ao serviço da comunhão, da unidade, da missão.
A Igreja universal está em todo o mundo e nos representantes, numa circularidade, torna-se sinodal, faz caminho em conjunto.
Triénio 2020-2023
AE – Gravamos esta conversa na sala onde foi eleito e um dia depois da eleição para presidente da CEP. O que espera para este triénio da Conferência Episcopal Portuguesa?
OC – Sempre admirei a CEP! Não somos bons no sentido de ser perfeitos, mas quando às vezes se especula sobre as divisões entre bispos, não tenho notado isso. Somos diferente e temos opiniões diferentes, sim. Mas os pronunciamentos da conferência são praticamente unânimes.
Que precisamos de mudar e de melhorar a articulação, de nos aproximarmos em conjunto à realidade, de repensar tudo isso, de estabelecer novos laços de cooperação e de trabalhar em conjunto dentro da Igreja, sim! E precisamos de dinamizar o espírito de missão, o que significa amassar o Evangelho com a realidade em que vivemos e encontrar linguagens novas para o mundo de hoje.
A pandemia, por exemplo, veio-nos ajudar a descobrir muitas coisas, como noutros setores da sociedade portuguesa. E as coisas novas, algumas delas, vão ser importantes, vão ser grandes utensílios para o futuro.
Na última Assembleia Plenária aprovámos um documento sobre o nosso olhar sobre a sociedade durante e a que vai saindo da pandemia, mas temos agendado um discurso semelhante sobre a Igreja. Não foi feito ainda, porque tudo isto está numa evolução muito grande.
AE – A Igreja pós-pandemia?
OC – A Igreja pós-pandemia!
Isto é muito dramático. Mas das pandemias nascem sempre mundos novos. E eu espero que esta experiência nos faça entender muitas coisas: uma Igreja que precisa de estar mais em rede, próxima daqueles que estão mais nas periferias e na atenção aos mais frágeis, porque nos pobres decide-se a civilização que queremos criar. As empresas, com mais ou menos desenvolvimento tecnológico, são mais ou menos prósperas. Mas é necessário saber se as empresas geram verdadeira riqueza e humanização ou pobreza e explorados. E é ao nível dos pobres que se vê se a “temperatura” passou os limites do razoável e começamos a ter uma pandemia.
Diz-nos o Evangelho e confirma-o uma pandemia: os pobres têm de ser o fulcro da atenção porque é por aí que construímos uma sociedade mais justa e melhor.
A Igreja tem um papel importante, não para se substituir a ninguém nem para se pôr em bicos de pés, mas porque traz para a construção desse mundo uma experiência, uma memória de humanismo, e procura um futuro que vai para além de todas as pandemias e de tudo o resto: a presença de Cristo vivo e presente que não se esgota no momento da História. É com Ele que nós olhamos, com responsabilidade, esforço e otimismo, este mundo em que vivemos, porque é possível fazer um mundo melhor.
(Entrevista emitida no programa 70×7 do dia 21 de junho, na RTP2)