Octávio Carmo, jornalista
“De facto, se realmente queremos construir uma sociedade mais justa e segura, devemos deixar cair as armas das nossas mãos: «Não se pode amar com armas ofensivas nas mãos» (São Paulo VI, Discurso às Nações Unidas, 04/10/1965)” – Papa Francisco no Memorial da Paz em Hiroxima
São já mais de 50 as vezes em que tive a responsabilidade de assinar notícias sobre as viagens internacionais dos últimos Papas. É sempre um momento com peso específico, pessoal e profissional, perante gestos e mensagens que são pensados para ficar na História, para lá da espuma dos dias. Até para lá das nossas notícias.
Quando um Papa vai a Auschwitz, a Hiroxima ou Nagasáqui, fala para o mundo todo, não apenas para as pessoas que tem diante de si. Nos últimos dias, pudemos assistir a passagens muito significativas pelos dois únicos locais que foram atingidos por bombas atómicas, na história da humanidade. São, como disse um dos sobreviventes, ataques contra todos os seres humanos, contra a sua possibilidade de futuro, e não apenas contra duas cidades japonesas.
Talvez se possa pensar que esta viagem de Francisco à Ásia não nos diz nada, concretamente, e se limita a interpelar os poderosos da terra, as potências nucleares. Mas o Papa fala a todos, quando pede uma paz desarmada, que é também desarmante para os critérios de tantos, por todo o mundo, incluindo muitos que são cristãos.
Falou na Tailândia, em nome das vítimas do tráfico de pessoas e os refugiados; quando pediu diálogo e colaboração entre religiões; quando ouviu e se emocionou com o testemunho das vítimas das tragédias nucleares no Japão.
“Deixemos cair as armas das nossas mãos”. Não haverá paz se ela não for desarmada e desarmante, de verdade e não apenas nas palavras.
Francisco falou a cada um, em particular aos católicos, para que as suas mãos não tenham armas, não produzam armas, não imitem armas… que sejam apenas as mãos do Bom Samaritano, o qual, apesar de ser alguém considerado longe do “coração” religioso do seu tempo, foi quem, nas parábola de Jesus, soube colocar em primeiro lugar as necessidades do irmão que estava caído à beira da estrada.
Do Japão, o Papa traz ainda o marcante testemunho de fé de tantos “cristãos escondidos”, após as perseguições que se iniciaram no final do século XVI. Eles recordam-nos que os heróis da fé, os mártires, não estão do lado dos torturadores, mas das vítimas. Com a oferta da sua vida, questionam-nos profundamente, como fez Shusaku Endo, no seu magistral livro ‘Silêncio’ – onde se podem rever crentes e talvez até não-crentes, nos momentos de mais profunda dor:
– Senhor, o teu silêncio magoou-me.
– Eu não fiquei calado. Eu sofri ao teu lado.