Exortação Apostólica Pós-sinodal de Bento XVI ao episcopado, ao clero às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre a eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum Caritatis de Bento XVI ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre a eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja INTRODUÇÃO 1. SACRAMENTO DA CARIDADE 1, a Santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirável, manifesta-se o amor «maior»: o amor que leva a «dar a vida pelos amigos» (Jo 15,13). De facto, Jesus «amou-os até ao fim» (Jo 13,1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos «até ao fim», até ao dom do seu Corpo e do seu Sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico! O alimento da Verdade 2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), fazendo-se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8,36), Cristo faz-se alimento de Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: «Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade?» 2 De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, «Caminho, Verdade e Vida» (Jo 14,6), dirige-se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a si o mundo. «Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma».3 No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso, a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2Tm 4,2), que Deus é Amor.4 Exactamente porque Cristo se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem, convidando-o a acolher livremente o dom de Deus. O desenvolvimento do rito eucarístico 3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela acção do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005, no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a orientação activa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica posta em prática a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II.5 O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da Assembleia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.6 O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia 4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual o meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em Guadalajara, no mês de Outubro de 2004, e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II, na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine 7, e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,8 numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,9 deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida. Finalidade do documento 5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos – a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, as Relationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos –, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho, tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarísticos. Consciente do vasto património doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,10 neste documento, desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,11 que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia, enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica – Deus caritas est –, na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: «O Deus encarnado atrai-nos todos a si. Assim se compreende por que motivo o termo agape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós».12 I PARTE EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO «A obra de Deus consiste em acreditar naquele que Ele enviou» (Jo 6,29) A fé eucarística da Igreja 6. «Mistério da fé!»: com esta exclamação, pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado, e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do pão e do vinho no Corpo e no Sangue do Senhor Jesus, realidade esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência «mistério da fé»: «É o resumo e a súmula da nossa fé».13 A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da Palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: «A fé exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé».14 Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; «graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo!» 15 Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo. SANTÍSSIMA TRINDADE E EUCARISTIA O Pão descido do Céu 7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3,16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá «alguma coisa», mas dá-se a si mesmo; entrega o seu Corpo e derrama o seu Sangue. Deste modo, dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do Evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-lo dizer aos interlocutores que vieram atrás dele até à sinagoga de Cafarnaum: «Meu Pai é que vos dá o verdadeiro Pão que vem do Céu. O Pão de Deus é o que desce do Céu para dar a vida ao mundo» (Jo 6,32-33), acabando por identificar-se Ele mesmo – a sua própria carne e o seu próprio sangue – com aquele pão: «Eu sou o Pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste Pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo» (Jo 6,51). Assim, Jesus manifesta-se como o Pão da vida que o Pai eterno dá aos homens. Dom gratuito da Santíssima Trindade 8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1,9-10; 3,8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em si mesmo é amor (1Jo 4,7-8), envolve-se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo se nos dá, na ceia pascal (Lc 22,14-20; 1Cor 11,23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2,7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3,34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.16 Assim, Jesus Cristo, que «pelo Espírito eterno se ofereceu a Deus como vítima sem mancha» (Heb 9,14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O «mistério da fé» é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: «Se vês a caridade, vês a Trindade».17 EUCARISTIA: JESUS, VERDADEIRO CORDEIRO IMOLADO A nova e eterna Aliança, no sangue do Cordeiro 9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a si (Jo 12,32), antes de «entregar o Espírito», Jesus diz: «Tudo está consumado» (Jo 19,30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Fl 2,8), cumpriu-se a nova e eterna Aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7,27; 1Jo 2,2; 4,10). Como já tive ocasião de afirmar, «na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o homem e salvá-lo – o amor na sua forma mais radical».18 No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da «nova e eterna Aliança», estipulada no seu sangue derramado (Mt 26,28; Mc 14,24; Lc 22,20). Esta finalidade última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de facto, nas margens do Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: «Felizes os convidados para a Ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.» Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal, que se ofereceu espontaneamente a si mesmo em sacrifício por nós, realizando assim a nova e eterna Aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical, que nos é oferecida em cada celebração.19 A instituição da Eucaristia 10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia, durante a Última Ceia. O facto teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12,1-28.43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor – a Berakah –, Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria «exaltação». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-se como o verdadeiro Cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai, desde a fundação do mundo, como se lê na ICarta de Pedro (1,18-20). Ao colocar o dom de si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal. A figura deu lugar à Verdade 11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado, mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).20 Com a sua ordem «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,19; 1Cor 11,25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom, desenvolvendo, sob a orientação do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim, Jesus deixou-nos a missão de entrar na sua «hora»: «A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação».21 Ele «arrasta-nos para dentro de si».22 A conversão substancial do pão e do vinho no seu Corpo e no seu Sangue insere na criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de «fissão nuclear» (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo fim último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,28). O ESPÍRITO SANTO E A EUCARISTIA Jesus e o Espírito Santo 12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico, dia após dia, em memória dele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.23 A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,24 activo já na criação (Gn 1,2), está presente, em plenitude, na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1,18; Lc 1,35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-o descer sobre si em forma de pomba (Mt 3,16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10,21); e é nele que Jesus pode oferecer-se a si mesmo (Heb 9,14). No chamado «discurso de despedida», referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos seus (Jo 16,7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da Paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20,22), tornando os seus discípulos participantes da mesma missão dele (Jo 20,21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14,26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo 15,26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16,13). Segundo narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria, no dia de Pentecostes (2,1-4), e impele-os para a missão de anunciar a Boa-Nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da acção do Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia. Espírito Santo e celebração eucarística 13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto, mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda que «invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em Corpo de Cristo e o vinho em Sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e transformado totalmente».25 Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo, quando celebra o Sacrifício: 26 à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, «descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos».27 É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito, a fim de que o pão e o vinho se tornarem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, e para que «a comunidade inteira se torne cada vez mais Corpo de Cristo».28 O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis «num só Corpo», tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.29 EUCARISTIA E IGREJA Eucaristia, princípio causal da Igreja 14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria «hora»; mostra-nos assim a ligação que quis, entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2,21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado – narra João – saiu sangue e água (Jo 19,34), símbolo dos sacramentos.30 Um olhar contemplativo para «Aquele que trespassaram» (Jo 19,37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta «vive da Eucaristia».31 Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer, antes de mais, que «existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja».32 A Eucaristia é Cristo que se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu Corpo. Portanto, na sugestiva circularidade, entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,33 a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela, no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de «fazer» a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: «Ele amou-nos primeiro» (1Jo 4,19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro. Eucaristia e comunhão eclesial 15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.34 Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-se a si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja: «… participando no Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só Corpo». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.35 O servo de Deus, João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação, entre Eucaristia e communio: falou do memorial de Cristo como sendo a «suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja».36 A unidade da comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no acto eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, «in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica existit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única».37 É precisamente a realidade da única Eucaristia, celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo, que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De facto, «a unicidade e indivisibilidade do Corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu Corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu Corpo, único e indiviso».38 Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua natureza.39 O facto de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.40 EUCARISTIA E SACRAMENTOS Sacramentalidade da Igreja 16. O Concílio Vaticano II lembrou que «os restantes sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o Pão vivo que dá aos homens a vida, mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas».41 Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.42 A este respeito, o referido Concílio afirmou que «a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano».43 Ela, enquanto «povo – como diz São Cipriano – reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo»,44 é sacramento da comunhão trinitária. O facto de a Igreja ser «universal sacramento da salvação»45 mostra que a «economia» sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério eucarístico. I EUCARISTIA E INICIAÇÃO CRISTÃ Eucaristia, plenitude da iniciação cristã 17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de concluir, antes de mais, que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogarmo-nos – como sugeriram os padres sinodais – se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; 46 de facto, é preciso não esquecer jamais que somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer, na acção pastoral, uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,47 incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos inseridos no único Corpo de Cristo (1Cor 12,13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do Corpo de Cristo (1Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.48 Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.49 A ordem dos sacramentos da iniciação 18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente 50 e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,51 se comparada com a das crianças.52 Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de carácter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1Ped 3,15). Iniciação, comunidade eclesial e família 19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que há-de ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário de iniciação. Receber o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.53 Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa. II EUCARISTIA E SACRAMENTO DA RECONCILIAÇÃO Sua ligação intrínseca 20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da Reconciliação.54 Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1Cor 11,27-29). Constatamos – é certo – que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,55 favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.56 Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.57 Além disso, a relação entre a Euca-ristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inse-ridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),58 sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.59 Alguns cuidados pastorais 21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do Bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer, entre os fiéis, a confissão frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do sacramento da Reconciliação.60 A propósito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,61 permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.62 Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.63 Por último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação, entre a Eucaristia e a Reconciliação, uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se «a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada».64 O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos «quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros».65 Dado que a forma própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da Confissão e da Comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã. III EUCARISTIA E UNÇÃO DOS ENFERMOS 22. Jesus não se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10,8; Lc 9,2; 10,9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.66 A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5,14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: «Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático».67 Nesta passagem para o Pai, a comunhão no Corpo e Sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.68 A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt 25,40). IV EUCARISTIA E SACRAMENTO DA ORDEM Na pessoa de Cristo cabeça 23. O vínculo intrínseco, entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem, deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22,19). De facto, na vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5,5-10), vítima de expiação (1Jo 2,2; 4,10) que se oferece a si mesma no altar da cruz. Ninguém pode dizer «isto é o meu Corpo» e «este é o cálice do meu Sangue» senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara, noutras assembleias, do sacerdócio ordenado, tanto no que diz respeito à identidade do ministério,69 como à formação dos candidatos.70 Na presente circunstância, importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero preside, na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis). A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.71 De facto, «no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como Cabeça do seu Corpo, pastor do seu rebanho, Sumo Sacerdote do sacrifício redentor».72 Certamente o ministro ordenado «age também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico».73 Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a acção litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris officium),74 é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10,14-15). Eucaristia e celibato sacerdotal 24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato, feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.75 O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz, no estado de virgindade, constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II 76 e com os Sumos Pontífices 77 meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade. Escassez de clero e pastoral vocacional 25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma distribuição mais equitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem, nas necessidades pastorais, os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.78 Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para o serviço sacerdotal.79 Um clero insuficientemente formado e admitido à ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.80 Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto. Gratidão e esperança 26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para se dedicarem totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos «não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério».81 Como recomendou a Assembleia do Sínodo, dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a Palavra de Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da missão da Igreja.82 Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloquência dos factos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira. V. EUCARISTIA E MATRIMÓNIO Eucaristia, sacramento esponsal 27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do homem e da mulher, unidos em matrimónio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do nosso tempo.83 Várias vezes o papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o carácter esponsal da Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimónio: «A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa».84 Aliás, «toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal, entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo, entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de núpcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia».85 Esta corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimónio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5,31-32). O consentimento recíproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem também uma dimensão eucarística; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal é sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expressão das suas «núpcias» com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do Matrimónio.86 A família – igreja doméstica 87 – é um âmbito primário da vida da Igreja, especialmente pelo papel decisivo que tem na educação cristã dos filhos.88 Neste contexto, o Sínodo recomendou também o reconhecimento da missão singular que tem a mulher na família e na sociedade, missão esta que há-de ser protegida, salvaguardada e promovida.89 A sua dimensão de esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser desprezada. Eucaristia e unidade do Matrimónio 28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre Matrimónio, família e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só mulher, e vice-versa (Gn 2,24; Mt 19,5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho: quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de firmeza,90 mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflecte sobre a natureza e os afectos humanos. Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio 29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimónio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de aspirar.91 Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de terem celebrado o sacramento do Matrimónio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.92 O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10,2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados recasados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados recasados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da Palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos. Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico,93 a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; 94 é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que «é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis».95 No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas «integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel».96 Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viverem a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio.97 Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes e a verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do Matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois não poderão honrar.98 Demasiado grande é o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimónio e da família, fundada sobre o mesmo, para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral específico; Matrimónio e família são instituições cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é realmente uma ferida que se inflige à convivência humana como tal. EUCARISTIA E ESCATOLOGIA Eucaristia, dom para o homem a caminho 30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no tempo 99, rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que, sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8,19s). O homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na direcção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que se torna presente para nós de maneira especial na celebração eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda «estrangeiros e peregrinos» (1Ped 2,11) neste mundo, pela fé, participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho. O banquete escatológico 31. Reflectindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, se colocou em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na Humanidade inteira e fundamentalmente na própria criação. Com o dom de si mesmo, inaugurou objectivamente o tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11,52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da Aliança para dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jr 23,3; 31,10; Lc 1,55.70). Com o chamamento dos Doze – número que evoca as doze tribos de Israel – e o mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que nele teve início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25,6-9) e descrito no Novo Testamento como «as núpcias do Cordeiro» (Ap 19,7-9) que se hão-de celebrar na comunhão dos santos.100 Oração pelos defuntos 32. A celebração eucarística, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição, enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, é penhor da glória futura, quando mesmo os nossos corpos serão glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvação, reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne, juntamente com a possibilidade de encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé. Nesta linha, queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiéis a importância da oração de sufrágio, particularmente a celebração de Missas, pelos defuntos para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus.101 Sempre que descobrimos de novo a dimensão escatológica presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no nosso caminho e confortados na esperança da glória (Rm 5,2; Tt 2,13). A EUCARISTIA E A VIRGEM MARIA 33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos, juntamente com o significado escatológico dos santos mistérios, irrompe o perfil da vida cristã, chamada a ser em cada instante culto espiritual, oferta de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos encontramos todos ainda a caminho, rumo à plena consumação da nossa esperança, isto não impede de podermos já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos deu, se realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao Céu em corpo e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta a nós, peregrinos no tempo, aquela meta escatológica que o sacramento da Eucaristia desde já nos faz saborear. Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental com que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana. Desde a anunciação ao Pentecostes, Maria de Nazaré aparece como uma pessoa cuja liberdade está completamente dispo-nível à vontade de Deus; a sua Imaculada Conceição revela-se propriamente na docilidade incondi-cional à palavra divina. A fé obediente é a forma que a sua vida assume em cada instante perante a acção de Deus: Virgem à escuta, Ela vive em plena sintonia com a vontade divina; conserva no seu coração as palavras que lhe chegam da parte de Deus e, dispondo-as à maneira de um mosaico, aprende a compreendê-las mais a fundo (Lc 2,19.51); Maria é a grande Crente que, cheia de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade.102 Um tal mistério vai crescendo de intensidade até chegar ao pleno envolvimento dela na missão redentora de Jesus; como afirmou o Concílio Vaticano II, «assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz. Junto desta, esteve, não sem desígnio de Deus (Jo 19,25), padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associando-se com coração de mãe ao seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que dela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-a por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher, eis aí o teu filho (Jo 19,26-27)».103 Desde a anunciação até à cruz, Maria é aquela que acolhe a Palavra que nela se fez carne e foi até emudecer no silêncio da morte. É ela, enfim, que recebe nos seus braços o corpo imolado, já exânime, daquele que verdadeiramente amou os seus «até ao fim» (Jo 13,1). Por isso, sempre que, na liturgia eucarística, nos abeiramos do Corpo e do Sangue de Cristo, dirigimo-nos também a ela que, por toda a Igreja, acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que «Maria inaugura a participação da Igreja no sacrifício do Redentor».104 Ela é a Imaculada que acolhe incondicionalmente o dom de Deus, e, desta forma, fica associada à obra da salvação. Maria de Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o modelo para cada um de nós saber como é chamado a acolher a doação que Jesus fez de si mesmo na Eucaristia. II PARTE EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO «Em verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão que vem do Céu; meu Pai é que vos dá o verdadeiro Pão que vem do Céu» (Jo 6,32) Norma da oração e norma de fé 34. O Sínodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a relação intrínseca entre fé eucarística e celebração, pondo em evidência a ligação entre a norma da oração (lex orandi) e a norma de fé (lex credendi) e sublinhando o primado da acção litúrgica. É necessário viver a Eucaristia como mistério da fé, autenticamente celebrado, bem cientes de que «a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente em relação com a acção litúrgica da Igreja»:105 neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de si próprio no mistério pascal. Beleza e liturgia 35. A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a si e chama à comunhão. Em Jesus, como costumava dizer São Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das origens.106 Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não enquanto mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor.107 Já na criação, Deus se deixa entrever na beleza e harmonia do universo (Sb 13,5; Rm 1,19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos sinais grandiosos do esplendor da força de Deus, que se manifesta com a sua glória através dos prodígios realizados no meio do povo eleito (Ex 14; 16,10; 24,12-18; Nm 14,20-23). No Novo Testamento, realiza-se definitivamente esta epifania de beleza, na revelação de Deus em Jesus Cristo: 108 Ele é a manifestação plena da glória divina. Na glorificação do Filho, resplandece e comunica-se a glória do Pai (Jo 1,14; 8,54; 12,28; 17,1). Mas, esta beleza não é uma simples harmonia de formas; «o mais belo dos filhos do homem» (Sl 45[44],3) misteriosamente é também um indivíduo «sem distinção nem beleza que atraia o nosso olhar» (Is 53,2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe transfigurar inclusive o mistério sombrio da morte, na luz radiante da ressurreição. Aqui o esplendor da glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal. A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da Glória de Deus e, de certa forma, constitui o Céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-se diante deles (Mc 9,2). Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza. A CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA, OBRA DE CRISTO TOTAL Cristo inteiro: Cabeça e Corpo 36. A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja na sua acção.109 Nesta perspectiva, é muito sugestivo recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz, esta dinâmica de fé própria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistério eucarístico, o grande santo de Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a si mesmo: «O pão que vedes sobre o altar, santificado com a Palavra de Deus, é o Corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é Sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós mesmos sois aquele que recebestes».110 Assim, «tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo».111 Nisto podemos contemplar a acção misteriosa de Deus, que inclui a unidade profunda, entre nós e o Senhor Jesus: «De facto, não se pode crer que Cristo esteja na cabeça sem estar também no corpo, pois Ele está todo inteiro na cabeça e no corpo (Christus totus in capite et in corpore)».112 Eucaristia e Cristo ressuscitado 37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente acção de Deus (actio Dei)