SABER APRENDER – E se deixássemos de lado as instruções?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Recordam-se do 5º planeta visitado pelo Principezinho de Saint-Exupéry?

«O quinto planeta era extremamente curioso. Era o mais pequeno de todos. Só lá havia espaço, à justa, para um candeeiro e um acendedor de candeeiros. (…)

Quando acende o candeeiro, é como se fizesse nascer mais uma estrela. Ou então mais uma flor. Quando apaga o candeeiro, é o mesmo que pôr a flor ou a estrela a dormir. É uma ocupação muito bonita. E porque é bonita, é útil.

Quando chegou ao planeta, cumprimentou respeitosamente o acendedor:

— Olá, bom dia! Porque é que apagaste mesmo agora o teu candeeiro?

— Obedeço a instruções – respondeu o acendedor. – Olá, bom dia!

— Instruções? O que é isso?

— São instruções de apagar o candeeiro. Boa noite!

E voltou a acendê-lo.

— Mas porque é que o voltaste a acender?

— São as instruções que tenho – respondeu o acendedor.

— Não percebo – disse o principezinho.

— Não há nada que perceber. Instruções são instruções. Bom dia!

E apagou o candeeiro. Depois enxugou a testa com um lenço aos quadrados vermelhos.

— Tenho uma profissão terrível. Dantes, ainda vá lá… Apagava o candeeiro de manhã e acendia-o à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir…

— Mas as instruções mudaram?

— Não, não mudaram – disse o acendedor. – E essa é precisamente a minha desgraça! Imagina que, de ano para ano, o planeta gira cada vez mais depressa e as instruções nunca mudam!»

O génio humano está ligado à capacidade de criar, imaginar, compreender, relacionar e, sobretudo, aprender. Mas durante este tempo de pandemia surgiram vários desafios aos nossos ritmos que ditavam os ritmos do planeta. E uma das facetas da vida humana mais afectadas foi o sistema de ensino, sobretudo quanto ao modo de ensinar.

A evolução tecnológica à disposição de muitas crianças, independentemente de terem ou não computador em casa, modificou o modo como um jovem acede ao conhecimento. Uma das maiores críticas feitas ao ensino é a de que tudo se alterou no último século, excepto o ensino. Desde a Grande Aceleração em meados do Séc. XX que a humanidade se impulsionou numa inimaginável viagem digital que transformou profundamente a cultura. Mas o ensino continuou ao estilo fabril. Crianças alinhadas. Professores a dizerem o que devem fazer, como se devem comportar, que matéria devem estudar e saber. Isto é, instruções associadas aos programas a cumprir, e queixas a crescer de que as crianças estão cada vez mais irrequietas. Onde estará a origem do aumento da pressão que pode levar a que o sistema rebente?

Ninguém sabia bem o que fazer diante do novo cenário pandémico que obrigou os professores a interagirem com as crianças, cada uma em sua casa. As horas passadas na escola ou universidade reflectiram-se num tempo imenso diante dos ecrãs a ouvir professores, em silêncio, com o som e/ou imagem desligados (estariam realmente em aula?), inúmeros trabalhos para fazer, instruções e mais instruções a cumprir. Por vezes via como os professores se esforçavam por captar o interesse dos alunos (através das aulas síncronas dos meus filhos), mas quantas vezes mais os ouvia a chamar alguns à atenção como se estivessem em sala de aula?

No ensino universitário não foi diferente. Semanalmente, dei aulas síncronas com quase 100 alunos, todos de câmera desligada, apesar de serem 200 os inscritos à disciplina. Fiz exames online e as notas não foram melhores apesar de ter acesso a tudo e mais alguma coisa, incluindo os colegas. Sentia-me disposto a mudar o modo de ensinar, mas não senti vontade de os alunos mudarem o modo de aprender. Continuam a perguntar o que sai para o exame, o que devem estudar e como. Parece que cumprem as instruções do guia-para-passar-à-disciplina, perdendo a oportunidade de tomarem as rédeas da sua aprendizagem. Raro foi o momento em que alguém demonstrava interesse em aprender. O que fazer?

O nosso planeta continua a girar em 24h, mas devido à internet e electricidade, podemos ter luz o dia todo, estar sempre online, sempre activos, com ritmos que levam a um planeta virtual que gira a uma velocidade diferente. E, ou mudamos as instruções, ou passamos a vida a acender e a apagar candeeiros, sem o menor sentido e significado, perdendo, gradualmente, a noção da vocação a que um dia nos sentimos chamados. Será difícil de ver no tempo presente a oportunidade de re-inventar o modo de ensinar que o novo ritmo imposto por este vírus nos abre? Será que ensinávamos ou instruíamos?

E se colocássemos de lado as instruções e aproveitássemos a oportunidade que a pandemia nos proporciona para desenvolver a capacidade de ensinar a aprender?

O convite a olhar o mundo com olhos novos é claro. Até agora sentíamo-nos confortáveis a dizer — “isto é assim” — mas os novos ritmos e maneiras de estar em sociedade para proteger os mais frágeis desta pandemia, ensinaram-nos a dizer antes — ”isto pode ser assim”. A conversão do que é a pode ser, abre um espaço de liberdade, risco, vulnerabilidade, com o qual podemos aprender muito mais do que imaginamos.

As pandemias não trazem livro de instruções, mas convidam-nos a colocar os nossos livros de instruções de lado e a criar modos novos e ousados de aprender, e ir em frente. Não é assim que acontece com cada criança que nasce? Os pais não seguem instruções para lidar com a unicidade de cada filho, mas aprendem a ser pais em cada dia e momento que passam com ele. Também os professores são convidados a aprender a serem professores com esta nova situação.

Creio estarmos diante de um cenário revolucionário quanto ao modo de educar, com a oportunidade de erradicar do presente, o passado que nos aprisiona a um modo de instruir.

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