SABER APRENDER – Deixar de ser ruído para apreciar o canto

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O confinamento em muitos países levou a uma alteração sem precedentes do som das nossas cidades. Nesse contexto, um grupo de investigadores britânicos realizaram uma iniciativa intitulada Projecto Quietude em que procuraram medir a acústica das cidades durante o confinamento. Os resultados foram surpreendentes.

Diversos estudos evidenciaram ao longo dos anos o stress gerado pelos ritmos urbanos. O tráfego, as multidões nos transportes públicos, as sirenes. Há quem goste desse movimento e, dificilmente, suportaria uma ambiente mais tranquilo, mas a Covid-19 obrigou-nos a fazer essa experiência.

Stephen Dance, professor de acústica da Universidade de Londres South Bank, diz que o equilíbrio está em acordar na quietude e sentir o vibrar urbano no final do dia, mas, depois do confinamento, o ruído urbano desceu em média 5dB, correspondendo a uma diminuição de 60% dos níveis normais (ver aqui; o efeito). Seguramente que muitos de nós experimentámos esta diminuição ao darmo-nos conta do canto dos pássaros e o folhear das árvores em dança ao som da brisa matinal. De certo modo, estamos a fazer uma experiência daquilo que poderá acontecer com o aumento do número de veículos eléctricos. Uma mudança o virar da esquina no percurso de evolução da mobilidade nas nossas cidades. Mas não foram só os carros.

Existem muitas vibrações com uma baixa frequência, como as que se geram por comboios, construções, que apenas os aparelhos de ondas sísmicas conseguem detectar. Esse é o ruído antropogénico de fundo que tornava obscuro os sinais naturais que o planeta nos oferecia e que a nossa actividade não permitia escutar. Nos últimos meses tivémos essa oportunidade.

As multidões a caminhar pelas ruas geram frequências de 1 a 8Hz, ao passo que as frequências dos comboios vão de 10 a 30Hz. É a ausência destes ruídos que nos pode ensinar alguma coisa sobre o comportamento humano. Aliás, medindo o ruído sísmico podemos ter uma ideia daquilo que estamos a fazer. Por isso, no confinamento, imagino os animais a experimentarem o silêncio humano. Mas não apenas em terra se notou a diferença, também no mar.

Os biólogos marinhos há muito que haviam correlacionado o tráfego marítimo dos barcos com o aumento do ruído nos mares e oceanos, cujos níveis poderiam atingir valores que afectavam ou mesmo matavam os animais marinhos, causando perda da audição, temporária e permanente, ou induzir nesses animais um comportamento de fuga, stress e malnutrição.

Quem tinha uma visão negativa da presença humana na Terra dizia sermos um vírus para o planeta. Sempre tive dificuldade com essa visão. Mas sermos ruído para o planeta parece ser uma realidade. No momento em que escrevo estas palavras, tenho a máquina de lavar roupa a centrifugar. Apesar de não estar próximo, o ruído é ensurdecedor e estendendo esta experiência ao efeito antropogénico do som sobre a natureza, fico a pensar se não deveríamos ter isso em conta em futuros desenvolvimentos tecnológicos.

O ruído exterior é, por vezes, um sinal e reflexo do ruído interior. Da nossa gradual diminuição da capacidade para a quietude e de estar mais tempo junto com os nossos pensamentos. O momento em que vivemos obriga-nos a um exame de consciência. Mas quantas vezes nos encontramos com a nossa consciência em momentos de quietude? O que nos obriga a parar, induz-nos a pensar.

«O silêncio não é a ausência de algo, mas a presença de tudo.» (Gordon Hempton, One square inch of silence, Free Press, 2009)

O convite deste silêncio urbano inesperado consiste em aproveitar o som natural exterior para aprendermos a escutar o canto silencioso interior. Um canto que mostra o caminho que percorremos, o que podemos corrigir, e nos inspira a dar o próximo passo a seguir. Um canto que nos convida a escutar coisas novas exteriores para que a sua frequência ressoe e transforme o nosso interior.

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Agência ECCLESIA

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