Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
A vida depende da verdade, mas nem todos acreditam nisso. Na Índia, Mohanish Ellitam vê os níveis de oxigénio da sua mãe de 49 anos a descer. Depois de 100 chamadas à procura de melhores condições para a ajudar a superar o drama da Covid-19, encontra lugar num hospital a 60km da sua cidade natal. Mais tarde, também o pai sente-se cansado e com dificuldades respiratórias. Ainda não há cama para ele. Inúmeras vezes Mohanish quebra e chora. O seu drama é o de centenas de milhares de pessoas na Índia. E, por vezes, perto de mim, há pessoas a afirmar que esta pandemia é uma farsa. A vida depende da verdade, mas nem todos acreditam nisso.
Nesta semana que dedicamos à vida, podemos pensar nos dramas das famílias, no direito a nascer, no dever de amar e ajudar quem sofre para que redescubra o valor de viver, mas creio ser essencial olhar, também, para a relação entre a vida e a verdade. Numa sociedade da informação, o modo como encaramos a vida encontra-se ameaçada pela desinformação. A onda de entusiasmo pelas redes sociais parece imparável. Tudo se partilha e quanto menos soubermos sobre uma coisa, maior a tendência de acreditar naquilo que vemos. A desinformação espalha-se por continuarmos sob a influência do ver para crer, sem querermos saber se é verdade ou não o que estamos a ver.
S. Shyam Sundar, especialista nos efeitos dos Media da Penn State University nos EUA, observou num estudo, como o baixo envolvimento das pessoas com um determinado assunto, leva-as a dar maior credibilidade aos conteúdos vídeo que lhes são apresentados. Não quer dizer que sejam verdade, mas acreditam mais naquilo que vêem do que naquilo que vivem. Pois, viver a verdade implica envolvermo-nos com a verdade. Um outro exemplo podemos encontrar no estudo feito por Sander van der Linden, psicólogo social da Universidade de Cambridge, que apresentou informação falsa a um grupo de pessoas a negar as alterações climáticas, e depois apresentou-lhes a informação verdadeira, mas as pessoas desse grupo não acreditaram. Ou seja, depois da desinformação, minamos a compreensão das pessoas em relação à verdade. O que é falso afecta a nossa vida e dificulta o retorno à verdade. Logo, afasta-nos do verdadeiro viver.
Parece-me óbvio que todos nós queremos viver da verdade, mas isso deixou de ser possível depois de reduzirmos o contacto com a verdade à informação que temos disponível através da internet. Não basta estar bem informado para celebrar a vida com a verdade, ou deixar que a nossa vida seja transformada pela verdade. É preciso experimentar a verdade e isso apenas se faz saindo do sofá, tirando os olhos do ecrã, e partir em busca da experiência de viver.
Into the Wild é a história de Christopher McCandless contada pelo jornalista Jon Krakauer, um jovem de uma família normal que fez um corte radical com tudo o que possuía e resolveu inventar uma nova vida para si mesmo num ambiente natural e selvagem. O final é dramático, mas Christopher escreve uma última frase antes da sua vida terminar consumida pela fome e pela solidão — «a felicidade só é real quando partilhada.»
A verdade, quando é real, também só se revela quando é partilhada, experimentada e vivida em comunidade. Sozinhos temos mais dificuldade em questionar a informação que recebemos, e as partilhas que ocorrem nas redes sociais não têm o carácter relacional que a busca da verdade exige. A vida que esta semana celebramos pede passos com as pernas e não com o deslizar dos dedos.
Um dos modos mais simples e concreto de experimentarmos a vida será reconectarmo-nos com a terra caminhando sob o impulso da navegação natural. Essa reintroduz a curiosidade de uma criança nos trajectos que fazemos pela cidade, jardim ou bosque. Por que razão os ramos das árvores se esticam na horizontal de um lado, e na vertical do outro? Por que razão existem flores do lado esquerdo do caminho, e menos do lado direito? Ao explorarmos os detalhes ao nosso redor numa caminhada que não tem outro propósito senão ela própria, aprendemos ao notar nas mais pequenas coisas que não aparecem nos mapas, e experimentamos emoções que são difíceis de registar com qualquer som ou imagem.
É curioso que a semana da vida seja celebrada antes de mais um aniversário da Encíclica Laudato Si’, que está profundamente relacionada com a vida. Desde Alexandre von Humbolt no século XVIII que o ser humano se deu conta de que, na natureza, tudo está em relação com tudo. É essa a base de toda a ciência ecológica que procura compreender os ecossistemas terrestres. E introduzir essa mente curiosa no nosso estilo de vida, aprendendo a compreender a natureza que nos rodeia, leva tempo. E, por vezes, precisamos da distância para experimentarmos o tempo necessário até nos desapegarmos do incontrolável desejo de querer saber (tudo e mais alguma coisa) para desfrutarmos do experimental desejo de querer viver.
Afastamo-nos das longas caminhadas por termos o tempo limitado, mas talvez sejamos nós que limitamos o tempo de vida que essas caminhadas nos proporcionam. Uma das iniciativas que se fazem nesta semana são, precisamente, as caminhadas pela vida. Nas que participei, confesso, nunca me interessei tanto pelo que o megafone dizia quanto pelo simples facto de viver aquele momento de família com outras famílias. Para mim, até no silêncio permeado dos risos das crianças, está o testemunho de vida suficiente que pode levantar o olhar mais cabisbaixo de alguém que pela rua anda aprisionado ao ecrã.
Os grandes desafios da pandemia e das alterações climáticas não são uma farsa de alguém que quer enriquecer à custa do sofrimento dos outros. A farsa e a morte está quando nos deixamos levar pelas seduções da desinformação com as quais somos bombardeados a todo o momento. Por vezes, temos mesmo de desligar, sair, caminhar e silenciar para sabermos aprender a viver a verdade que nos aproxima da realidade, e nos inspira nas escolhas de vida que nos conectam, cada vez mais e melhor, ao mundo natural, aos outros e a Deus.
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