Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Os escândalos dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica dificultam ainda mais a possibilidade de ver Deus. E se contabilizarmos os abusos de poder (como se alguém tivesse realmente poder sobre o que quer seja relativo à fé) também será difícil para alguns crentes ver Deus. Depois, os materialistas costumam ridicularizar quem tem fé, frequentemente, perguntando se alguma vez viram Deus (usando o verbo ver à letra). E o crente quando lê o Evangelho de S. João confronta-se com — «A Deus jamais alguém o viu.» — pode sentir-se em sarilhos. Mas, o que vem a seguir — «O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer.» (Jo 1, 18) — aponta uma pista interessante. Porém, ninguém terá visto Deus antes de Jesus e este deu-nos a conhecer Deus (ou vamos conhecendo ainda). Mas não é que depois de Jesus morrer passámos a ver Deus. Será isso alguma vez possível? Bom, aparentemente, para Jesus, sim.
Enquanto estava numa missa durante as férias, a homilia do sacerdote, corajosamente, referia os diversos episódios sobre os abusos no seio da Igreja Católica disseminados pelos meios de comunicação social. E ao escutá-lo pensava como estas dores, como católico, são as minhas também. Seguramente, aqueles que cometeram esses crimes, e aqueles que cometem ainda os crimes de abuso de poder nas várias instituições e organismos da Igreja Católica têm muita dificuldade em ver Deus naquele que estão a abusar. Por isso, como podem, e podemos, cada um de nós, saber aprender a ver Deus? Foi nesse momento que olhei para o lado e pareceu-me vislumbrar a resposta.
No chão da Igreja estavam coladas as indicações de distanciamento social para quando as pessoas fossem receber a comunhão e (com inteligência), alguém foi inspirado a sugerir que se incluíssem frases do Evangelho. A que estava escrita quando olhei para o lado foi — «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8). E nesse momento estava, precisamente, a ler um livro do cardeal Tomás Spidlík (1909 – 2010) que se intitula “A arte de purificar o coração”. Por isso, pensei se nesse pequeno livro poderia encontrar as pistas para cada pessoa poder desenvolver esta arte e purificar o coração para podermos melhor ver Deus, ainda que permaneça como questão, para já, o que isso possa significar.
Um primeiro ponto que Spidlík chama a atenção é a necessidade de abandonarmos a ideia de que “corpo” é o mesmo que “carne”. No Evangelho, “carne” usa-se mais no sentido moral do termo. E se Deus assumiu um corpo, significa que esse é “santificável” se se unir cada vez mais e melhor a Deus. Depois, assim como no livro de Job, importa reconhecer que a vida interior de cada ser humano é um combate, pelo que todos somos susceptíveis de falhar. Por fim, por “coração”, a Sagrada Escritura não entende apenas o que sentimos, como acontece no mundo ocidental, mas refere-se a todo o nosso ser, sobretudo aquilo que diz respeito à vida interior.
Existem abusos que sabermos estar a cometer (sendo os mais frequentes de origem autoritária), mas isso não acontece logo. Antes, todos nós estamos sujeitos à penetração da malícia no coração e Spidlík identifica cinco estados. Parece-me que se estivermos mais conscientes de quais são esses estados e o que significam, melhor poderemos educar a vontade própria e poder caminhar na direcção de um coração mais puro. O primeiro estado é a sugestão.
- A sugestão corresponde à primeira fantasia, à primeira imagem ou impulso. Depois…
- o colóquio significa, como no Génesis, que nos deixamos provocar pela sugestão e começamos a reflectir: e se…? Perde-se muita energia nestes colóquios interiores insensatos, mas existe sempre a possibilidade de ficarmos por aqui, ou passar para…
- o combate depois do pensamento reflectido começar a assentar no coração e a influir sobre a nossa vontade de ir para frente, ou não, com o pecado. E se não somos capazes de resistir ao combate segue-se…
- o consentimento de quem se deixou vencer pela batalha e pensa cometer o pecado à primeira oportunidade que surge. Chegou-se ao estado de pecar com o pensamento, mas podemos ainda não exteriorizá-lo e ainda podemos resistir num último golpe. Pois, como Diz Spidlík — «o ser humano é, essencialmente, aquilo que decide e não aquilo que o leva à atracção dos sentidos.» Porém, a tragédia acontece com…
- a paixão, onde nos deixamos escravizar pelos “pecados do pensamento” e entramos numa inclinação sistemática para o mal (nosso e dos outros), sem qualquer controlo sobre nós próprios e a nossa vontade. Neste estado final, por vezes, não só o acompanhamento espiritual, mas sobretudo o acompanhamento médico poderá resolver alguma coisa.
Como pode a “Arte de Purificar o Coração” ajudar? “Purificar o coração” significa voltar a uma paz interior através de uma prática, também, interior, que nos aproxima cada vez mais de Deus. Spidlík refere-se a essa prática como «a atenção ou vigilância de coração, ou sobriedade mental.»
A atenção — segundo Spidlík — consiste na «presença psicológica relativa ao que se faz». Isso leva-me a pensar que vivemos num mundo de grandes distracções que estimulam a falta de atenção que dificulta a purificação do coração, levando as pessoas a cometer os abusos. E Spidlík exemplifica a falta de concentração com uma pequena experiência de um psicólogo.
«Um psicólogo tinha no seu gabinete uma grande aquário com vários tipos de peixe raros. Próximo do aquário estavam algumas poltronas onde se sentavam os seus pacientes durante a consulta por serem incapazes de prestar atenção à leitura. Depois, o psicólogo pedia a cada um para seguir com o olhar os movimentos de um daqueles peixinhos. No início não conseguiam, mas depois de exercitar, acabavam por conseguir não perder de olho o peixe escolhido por meia hora! Depois daqueles exercícios, os pacientes confessavam que já conseguiam, sem se distrair, seguir o curso de uma leitura mental, também, por meia hora.»
Dominaram a vontade própria com a prática da atenção.
O mundo precisa de despertar para a prática da atenção, mas como muitos destes abusos foram cometidos no passado, e antes não existiam tantas distracções, não se torna questionável que a falta de concentração esteja na génese dos abusos cometidos? Diante do tédio, desde sempre que a mente vagueou pelos pensamentos. E se temos falhas no nosso desenvolvimento pessoal, de tal modo que o vaguear da mente suscita pensamentos que não nos fazem bem, nem aos outros, é compreensível que a falta de prática da atenção na arte de purificar o coração impeça a forma mais imediata de ver Deus. Ver Deus no outro.
«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
A Arte de Purificar o Coração pode ajudar-nos a identificar os estados que nos aproximam de um abuso (seja de que natureza for) que nos impede de ver Deus, mas a prática da atenção, qual sobriedade mental, ajudar-nos-á a ver Jesus em cada pessoa que está diante de nós. Pois, saber aprender a ver Deus significa saber aprender a ver Jesus no outro.
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