SABER APRENDER – A sermos comunidades-família

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Em Coimbra, os freis franciscanos em Santo António dos Olivais têm o hábito de dizer – «Bom dia!» ou «Boa tarde!» – e as pessoas reagem como numa família, respondendo, ou mesmo no fim quando se despedem com o desejo de um bom final de dia, as pessoas agradecem e desejam o mesmo para eles. Sente-se o clima de família e habitua-nos. Quando fui recentemente a uma missa em Lisboa, o padre dirigiu-se à comunidade o mesmo cumprimento – «Boa tarde!» – ao que respondi com a intensidade de voz habitual e apercebi-me ter sido o único a fazê-lo. Não senti vergonha, mas fiquei perplexo e a pensar.

Foto de Maya Reagan em Unsplash

Uma saudação inicial como “O Senhor esteja convosco” leva a uma resposta imediata da comunidade que diz – “Ele está nos meio de nós”, mas depois deste episódio fiquei a pensar se não se tornaram pró-formas da vida espiritual que fazem parte dos rituais, mas que os sentimos e vivemos muito pouco em algumas das nossas comunidades, sobretudo nas grandes cidades e centros urbanos. E se o facto deve-se a que as comunidades deixaram de pensar no seu sentido de existir como semelhante ao de uma família. Felizmente, existem paróquias em Lisboa conscientes da importância de nos darmos conta de como somos familia.

Na Paróquia de Santa Joana Princesa, o site tem explicitamente escrito que – «A Paróquia é uma família de famílias. Cada família, que é em si uma comunidade de vida e de amor, é chamada a ser a célula da sociedade e, desde logo, também da comunidade cristã. Lugar de encontro entre várias gerações, lugar onde o amor se experimenta, se oferece e se desenvolve, a família é também, muitas vezes, lugar de sofrimento, de dificuldades e passa por crises.» Por isso, se um “bom dia” correspondido pode levar o estranho que vai aquela missa a sentir-se em família, um “bom dia” não correspondido pode levar outros (como eu) a sentir a indiferença e alguma frieza que leva a pensar se aquela comunidade-família paroquial não estaria a passar por alguma dificuldade.

No passado dia 24 de outubro, o Papa Francisco falou à Comunidade Académica do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família e disse

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«A família continua a ser uma “gramática antropológica” insubstituível dos afetos humanos fundamentais. A força de todos os laços de solidariedade e amor aprende os seus segredos ali, na família. Quando esta gramática é negligenciada ou perturbada, toda a ordem das relações humanas e sociais sofre as suas feridas. E, por vezes, são feridas profundas, muito profundas.

Por exemplo: não vai porventura o voluntariado social buscar a estes laços generativos e fraternos de amor os símbolos e as modalidades das suas melhores relações? A proteção dos indefesos não tem a sua raiz no cuidado com o gerado? A fraternidade não é uma experiência fácil, claro, mas haverá porventura melhor forma do que nascer como irmãos e irmãs para compreender o significado de ser — todos nós — igualmente humanos?

Eis então, irmãos e irmãs, quais são as fronteiras do desafio que nos impele a retomar o fio da irradiação de todos os componentes do amor familiar — e não apenas do casal — para toda a sociedade. A qualidade do matrimónio e da família decide a qualidade do amor do indivíduo e os laços da própria comunidade humana.»

Se o Papa reconhece o efeito causal da gramática da família na sociedade, maior ainda será esse efeito quando pensamos nas nossas comunidades-família paroquiais.

Se lermos o documento dedicado à etapa continental do Caminho Sinodal, e pensarmos na liturgia como um espaço privilegiado de encontro da comunidade-família paroquial, damo-nos conta de como a experiência de uma simples missa que celebramos juntos pode inspirar-nos um sentido de presença com Deus em nós e entre nós, sublinhando a unidade da comunidade e a alegria de viver. Mas essa celebração não está isenta das dificuldades que muitos sentem com o protagonismo litúrgico do sacerdote e a passividade dos participantes.

Ao escutar aquele «Boa tarde! do sacerdote senti que ele desejava centrar o protagonismo da celebração na experiência de família que uma simples saudação poderia suscitar, mas a passividade dos participantes serviu de bloqueio a essa intenção. Haverá motivo para pensar nas comunidades urbanas das grandes cidades como frias e onde o anonimato é preferível ao relacionamento pessoal?

Num destes dias, quando estava na missa e o Frei que conduzia a celebração referia logo de início como se sentia que estávamos todos cansados ao fim de um dia de trabalho, e agradecia ao coro com guitarras que dava ânimo com a música, com simples palavras fez-nos a todos sentir que estávamos em casa, em família. Partilhávamos naquele momento as nossas dores e alegrias. Talvez existam Igrejas cujo espaço é demasiado grande aos dias de semana para nos levar a experimentar a comunidade paroquial como família. A vida interior é um caminho pessoal e relacional. A harmonia do espaço depende da proximidade que sentimos ao estarmos uns dos outros. E se estamos demasiado cansados ou atarefados para sentir o desejo de vivermos mais como comunidades-família, creio que seria o momento de pedir a Deus uma graça particular de conversão.

Se um desconhecido não experimentar entrar num momento da comunidade paroquial como um momento de família, como poderemos esperar que ele (eventualmente um agnóstico) possa experimentar Deus como Pai e como Irmão por meio do Espírito Santo que se pode sentir pelo amor vivido entre os membros da comunidade? Por vezes pensamos que a Nova Evangelização passa pelos grandes eventos (como as Jornadas Mundiais da Juventude) ou as grandes conversões testemunhadas em eventos de massa, mas a vida transforma-se no quotidiano, através das pequenas coisas que podem suceder-se frequentemente. Coisas como entrar numa Igreja, o sacerdote cumprimentar as pessoas, essas responderem e o desconhecido sentir-se em casa, em família, e acolhido mesmo que não lhe perguntem o nome.


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