Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Nem tudo o que é irresistível é viciante. Se alguém nos oferece um café depois de almoço e gostamos dessa bebida, é irresistível e aceitamos. Mas se não tiver oportunidade de tomar café depois de almoço por ter um compromisso, penso que ninguém fica ansioso por isso, excepto se o café se tornar num vício. Adam Alter, professor de marketing e autor de Irresistible, concluiu que as «apps e plataformas podem ser desenhadas para promover conexões sociais ricas; ou, como os cigarros, podem ser desenhadas para serem viciantes.» E, hoje, se as apps promovem mais o vício que a conexão, como reconhecer que um comportamento digital se tornou num vício?
O desapego é um dos princípios e fundamentos dos exercícios espirituais inacianos, de modo a que uma pessoa se possa entregar totalmente a Deus. Mas também a psicologia refere o papel do desapego quando associado a um desligar mental após um dia de trabalho, de modo a recuperar do cansaço diário. Estar desapegados das coisas não significa que não lhes damos importância, mas estamos antes a dar-lhes o devido lugar, sem comprometer a nossa liberdade. Um vício, pelo contrário, vive no apego, e quando cria raíz no nosso estilo de vida, dificilmente conseguimos reconhecê-lo como vício.
Quando recomendo às pessoas em workshops sobre “Gestão de Tempo” a experiência de se desapegarem das redes sociais durante 30 dias, todos “torcem o nariz”, ou permanecem indiferentes à proposta. A ideia parece tão absurda a uma pessoa que usa, regularmente, as redes sociais que considera ridículo e semelhante a pedir-lhe que não beba água durante três dias porque manter-se activo nas redes sociais tornou-se vital. Não há qualquer motivo de fundo que não seja profissional que justifique uma pessoa não poder fazer este tipo de experiência. Se afirma que não consegue porque “precisa” de estar a par daquilo que os amigos e familiares andam a fazer, vive apegada.
Questiono se as pessoas que usam as redes sociais como ferramentas de evangelização não correm o sério risco de se tornarem viciadas, sobretudo os sacerdotes. A pressão que uma rede social exige de estarmos sempre a actualizar o mural, leva a uma dependência biológica da libertação de dopamina, um neurotransmissor associado a um sentimento de realização.
No caso dos sacerdotes, ter mais seguidores e “gostos” naquilo que partilham, dá-lhes a sensação de ser um sinal de sucesso na sua missão evangelizadora. O que desconhecem é que as pessoas fazem “gosto” em relação ao que escrevem, mas de seguida podem fazer “gosto” a um vídeo de gatinhos. Logo, quem vê o “gosto” no pensamento profundo que partilhou fica com a impressão de ter chegado às pessoas, mas nada lhe garante isso. Aliás, quando estava nas redes sociais, confrontei-me com pessoas que colocaram “gosto” em relação à partilha de um texto meu e quando falei com elas, percebi que não o tinham lido. Gostaram de quê, afinal?
Ninguém abdica daquilo que lhe faz bem, porque um vício distingue-se de uma virtude pelo bem que gera na nossa vida e na vida dos outros. Que bem gera muito do tempo que damos à parte digital da nossa vida? Será que as pessoas incluem os apegos digitais no seu exame de consciência? Tenho dúvidas, até porque acompanhar as dinâmicas digitais pode cortar-nos muito do tempo que poderíamos dedicar a fazer esses exames. Logo, não será isso um sinal de estarmos perante um vício?
Muitas vezes admiramos as pessoas que nos respondem logo aos emails. Contudo, ou tivémos muita sorte, e a pessoa estava a consultar emails no momento que recebeu a nossa mensagem e tinha tempo para responder; ou a pessoas está, sistematicamente, a consultar os emails, a responder, e isso fá-la sentir-se produtiva, quando, na prática, nada produz. Noutros tempos, para te escrever uma mensagem, fazia um rascunho, revia o texto e passava a limpo para um papel, metia num envelope e levava aos correios uma carta para ti. Depois, sabia que demoraria tempo até receberes a minha carta e encontrares o tempo para me responder. Hoje, basta um ecrã e teclar. O resultado tem sido a banalização do conteúdo das nossas mensagens.
O bispo americano Robert Barron é um exemplo sadio do modo como podemos evangelizar usando a internet e os recursos digitais do século XXI, mas, recentemente, conta uma experiência que fez nos Social Media onde um grupo significativo de católicos criticou um artigo que escreveu com comentários que atingiam o nível da calúnia. Não uma contra-argumentação ponderada que pudesse ajudar o bispo Barron a rever as suas ideias, mas injúrias reactivas sem conteúdo. São católicos que se revelam como um anti-testemunho contrário ao propósito daqueles que pretendem usar as redes sociais como ferramentas da Nova Evangelização. Isto é, podiam testemunhar aos outros uma vida de unidade que leva os que não conhecem Jesus a dizer, como Tertuliano — «vede como ele se amam.» Mas não o fazem. E convém estarmos conscientes de que o testemunho que damos através das redes sociais será escrutinado pelo mundo que dirá — «vede como eles reagem.»
Ao reflectir sobre o impacte que a vida digital tem sobre a vida espiritual, e sendo crítico das redes sociais como ferramenta de evangelização, estou ciente de que muitos leitores poderão não chegar a este parágrafo sem antes terem dito para si mesmos — «lá está ele…» — e carregaram outra página, ou voltaram para trás no navegador de internet. O modo como me desapeguei das redes sociais (e estava em todas) foi apagar as contas e posso testemunhar que a minha vida digital e física melhorou, sem perder o contacto com as pessoas. Aliás, pelo contrário, quando me encontro com um amigo, ou nos telefonamos, não faltam temas para pôr a conversa em dia.
Quando o tabaco surgiu ninguém pensava que seria um vício que nos faria mal à saúde. As redes sociais não se comparam ao tabaco, mas diversos estudos demonstram como se pode tornar num vício e fazer mal à nossa saúde mental e espiritual. Há um argumento (in)compreensível de que temos de estar presentes nas redes sociais para lhes dar o conteúdo profundo que reconhecemos não terem. Mas, em rigor, nada nos garante que esse conteúdo profundo atinja, profundamente, o coração das pessoas como pensamos. E, apesar de fazermos missão com boa intenção, se essa se centra na nossa pessoa, como os “padres TikTok”, corremos o risco de ganhar um vício sem nos darmos conta disso. Saber aprender a reconhecer um vício na era digital é uma necessidade sobre a qual muito há ainda a reflectir.
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