Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
No 30º Domingo do Tempo Comum escutámos no livro de Ben-Sirá— «O Senhor é um juiz que não faz acepção de pessoas. Não favorece ninguém em prejuízo do pobre e atende a prece do oprimido. Não despreza a súplica do orfão nem os gemidos da viúva.» — Por isso, quando num grupo de jovens, ou de famílias, ou de simples cristãos que se reúnem (seja por que motivo for), se decide colocar “de parte” aqueles que não têm uma opção de vida cristã “regular” (agnóstico, re-casado, não baptizado, etc.) porque podem “perturbar” a experiência que os “regulares” querem fazer, estão a fazer o que Deus não faz: acepção de pessoas.
Uma das experiências mais belas que fiz com grupos de famílias foi a comoção de um casal de re-casados que vertia lágrimas de alegria e tristeza ao partilhar a sua experiência de não sentirem-se acolhidos noutros grupos de famílias da Igreja, senão naquele grupo, por causa da sua situação. Desejavam viver intensamente a sua fé, apesar da complexa situação de cada um, e que os levou a re-encontrar o amor entre si ao ponto de quererem construir um lar juntos. Mas nem todos conseguiam ver para além da chaga e faziam acepção daquelas duas pessoas. Uma outra experiência aconteceu quando fomos (eu e a minha esposa) falar a um grupo de jovens onde um deles que participava oferecia a sua perspectiva de agnóstico. Ficámos surpreendidos e tomados pelo acolhimento que os outros faziam da sua perspectiva e percebemos a razão de ele sentir que podias crescer, interiormente, naquele grupo: não faziam acepção de pessoas.
O caminho sinodal continua. E o risco de continuarmos a fazer acepção de pessoas, ou das suas opiniões, existe. Mas se existe algo que Jesus sempre nos ensinou foi a não fazer acepção de pessoas. Basta pensar no episódio da samaritana em João 4. Um encontro simples junto de um poço. Jesus que era judeu sabia que esses não se davam com os samaritanos, mas isso não O impediu de entrar num diálogo profundo com aquela mulher samaritana. Jesus foi verdadeiro com ela e ela foi verdadeira com ele. Jesus não procurou converter a samaritana ao judaísmo, ou convencê-la a segui-Lo. Jesus, simplesmente, interessou-se por ela e ofereceu-lhe um vislumbre sobre a frescura da experiência que podemos fazer com Ele que nos dá água viva. Ele sacia a sede de sentido e significado que a nossa vida precisa para sobreviver num mundo conturbado como o nosso. Ou dito de uma forma mais concreta: Ele ama-nos e interessa-se mais por nós do que por aquilo que dizemos que somos ou pensamos ou qualquer situação “irregular” que vivamos.
Uma Igreja cujo modo de ser é sinodal precisa da excepção porque a considera uma oportunidade excepcional de dialogar com o mundo que pretender evangelizar. Quando fazemos acepção de pessoas, estamos a convertermo-nos no estilo do fariseu que diz — «Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens…» — e considera-se “regular”, não querendo ser perturbado por aquele que é diferente e se aproxima de nós por sentir-se atraído pelo altar relacional da vida. Todos somos um pouco fariseus e publicanos, embora reconheça que prefiro a oração do publicá-lo que muitas vezes repito — «Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim.» — Uma oração que faz parte de um método psico-físico com origem no hesicasmo e que o Cardeal Tomás Spidlík retoma no seu livro “A Arte de Purificar o Coração” (pequeno, mas não traduzido para português) como forma de inculturação do «orai sem cessar» de S. Paulo que nos predispõe a acolher o outro sem fazer acepção da sua pessoa.
Por vezes pergunto-me qual a motivação por detrás das pessoas que pensam que os que são diferentes nas nossas comunidades eclesiásticas merecem estar num grupo à parte. Será por quererem fazer um acompanhamento diferente e mais personalizado? Como posso pensar que estão a fazer acepção de pessoas quando a sua intenção poderá ser a de criar um espaço onde a linguagem seja mais universal, sem ter de falar de Deus directamente? Alguma vez Jesus escondeu quem era? Por que razão haveremos nós de mudar o discurso no nosso grupo se vier uma pessoa que pode pensar de modo diferente? Até Jesus mudou de ideias depois de fazer uma espécie de acepção de uma pessoa.
Na região de Tiro e Sídon, uma mulher lança-se aos pés de Jesus a pedir que salvasse a sua filha, ao que Ele responde — «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.» (Mc 7, 26) — Terá feito Jesus acepção daquela pessoa, ainda por cima mulher? Mas a mulher não lhe recorda o Livro de Ben-Sirá, e responde com um amor inteligente — «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos.» (Mc 7, 28) — E, nesse momento, Jesus muda de ideia e «em atenção a essa palavra, vai» — a sua filha se salvou. Diz o economista Luigino Bruni a propósito deste episódio no seu livro “As Comunidades Frágeis” (não traduzido para português) que — «se o Filho do Homem mudou de ideia dialogando com a sua gente, então, o diálogo deve mudar as ideias, também, em nós, e nunca mudar uma ideia não é um bom sinal do espírito cristão.»
Saber aprender a não fazer acepção de pessoas implica acolher no seio dos nossos diálogos herméticos e já estabelecidos a voz de alguém que nos perturba. Claro que não me refiro à perturbação desrespeitosa. Essa, usualmente, merece o nosso silêncio e oração por quem nos desrespeita, ou será vão o convite de Jesus a amar os inimigos? As comunidades fragilizam-se quando se fecham sobre um modo de ser do passado que se tornou desadequado para responder aos desafios do presente. Não são as pessoas que fazem tudo “direitinho” (algum de nós faz?) que nos ajudam a ler os sinais dos tempos e a escutar aquilo que Deus nos pode dizer quando acolheos ou saímos ao encontro dos “samaritanos” deste mundo.
Todas as pessoas acreditam em alguma coisa. Mesmo aqueles que dizem não acreditar em coisa alguma, precisam de acreditar nisso. Todas as pessoas têm uma experiência de vida diferente e no encontro e comunhão de experiências, Deus enriquece-nos se nos amarmos reciprocamente. Não “apesar da nossa diferença”, mas por causa dessa. Uma voz diferente só gera divisão se não houver um clima de amor recíproco. Nesse clima podemos dizer tudo o que pensamos e experimentamos porque o fazemos por amor. E quando «dois ou mais» se amarem ao ponto de respeitar a diferença entre si, mais intensa se torna a vivência da presença de Jesus no meio deles (Mt 18, 20). Quem faz acepção de pessoas nega à comunidade esta possibilidade. Não queiramos fazer o que Deus não faz.
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