Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O fim do mundo como nós o conhecemos começou com as redes sociais. A intenção era boa, mas o resultado está a isolar-nos cada vez mais do mundo. Muitos tentam usar ainda as redes sociais para fins positivos e acho que fazem bem porque se o Titanic do nosso contacto com a realidade está a afundar-se, ao menos haja alguém que dê algum sentido positivo ao desfecho final. A Meta (que antes era Facebook) num anúncio comercial do Superbowl (futebol americano) lança o fim do mundo real como se fosse uma coisa boa escapar dele. É o fim do contacto com a realidade física para nos imergir numa realidade virtual que gerará um choque cognitivo sem precedentes na nossa história. A solução passará por parar, respirar bem fundo e reconstruir o nosso relacionamento com o mundo natural.
Num dos episódios de “Sonhos Eléctricos” inspirados em histórias do escritor de ficção científica Phillip K. Dick, adaptadas numa série da Amazon Prime, uma mulher-polícia num futuro tecnológico recebe como presente umas férias numa realidade virtual ainda em fase de desenvolvimento, mas que explora os maiores desejos interiores à pessoa. Nesse mundo virtual, essa mulher é um homem, fundador de uma empresa de tecnologia de ponta em… Realidade Virtual. Por isso, nesse mundo, ele cria um aparelho, também em fase de desenvolvimento, que nos transporta para um mundo futurista onde tudo é mais avançado e perfeito. Logo, na prática, qual é a realidade física e a virtual entre estes dois mundos onde num, aquele ser humano (para usar uma expressão sem género) é homem, e no outro é mulher? Tudo chega a um ponto em que no mundo em que é homem, alguém pensa com ele que não existem mundos perfeitos e que o sofrimento que ele vive pelo assassinato da mulher talvez seja a razão de desejar que o mundo futurista, onde é mulher, seja um mundo com menos dor e mais felicidade. Ele tem de escolher, e escolhe o mundo mais realista onde é homem. Acontece que, de facto, o mundo real era aquele onde ele é mulher e acaba por entrar em prisão cognitiva ao mundo virtual onde se imergiu, de tal modo que quebrá-lo arrisca-se a uma morte cerebral. A realidade virtual que a Meta promove não tem este tipo de realismo, mas outro que afecta o nosso interior.
Mark Zuckerberg explica num artigo inaugural que — «a qualidade que define o metaverso será o sentimento de presença — como se estivéssemos lá, junto da outra pessoa ou num outro lugar. Sentir-se verdadeiramente presente com outra pessoa é o sonho último da tecnologia social.» — Um “sonho eléctrico” onde existem mundos virtuais que se afastam da realidade física dura de todos os dias e onde nos sentimos afastados uns dos outros. Zuckerberg diz ainda que — «neste futuro poderás teleportar-te instantaneamente como um holograma para o escritório sem necessidade de transporte, ou para um concerto com os amigos, ou para a sala de estar com os pais para pôr a conversa em dia.» Por detrás desta aparente abordagem à comunicação mais ecológica, ou conectiva, estão sérias questões meta-físicas.
Há cinco anos, um grupo de investigadores liderado por Brian Primack da Universidade de Pittsburgh publicou um estudo; com quase 400 citações (é muito para tão pouco tempo) onde concluiu que os jovens adultos com elevado uso das redes sociais parecem sentir-se socialmente mais isolados do que os seus pares que usam bastante menos. Em Janeiro de 2022, com César Escobar-Viera, Primack revê; a relação entre as redes sociais, a depressão e a ansiedade, e a correlação é clara. Mas reconhece, também, que essa correlação pode ser usada para identificar aqueles que mostram sinais perigosos em relação à sua saúde mental e agir a tempo de os ajudar a superar o que estão a viver.
E para além da saúde mental das pessoas, as redes sociais conseguem manipulações ao nível da sociedade como as recentemente reportadas num relatório; de um grupo de investigadores da Universidade de Oxford que concluiu como os social media manipulam a opinião pública de tal modo que se tornaram uma ameaça crescente às democracias em todo o mundo.
Quando oiço em orações de fiéis agradecimentos pelo que as redes sociais permitem fico com arrepios, mas estou ciente de fazer parte de um grupo restrito de pessoas que possui muitas reservas relativamente à sua potencialidade por aquilo que os estudos têm revelado. Mas consegue-se conceber o mundo sem os social media? Neste momento, o fim das redes sociais poderia sujeitar o mundo a um “choque de terminação”, uma expressão do escritor de ficção científica Neal Stephenson e título do seu mais recente livro (Termination Shock) e que criou, também, a expressão metaverso no seu livro Snow Crash de 1992. Segundo a ideia de Stephenson, o “choque de terminação” consiste em questionar quais seriam as consequências de desligarmos o sistema depois de estar em andamento há algum tempo. E no caso das redes sociais, poderiam ser devastadoras?
Todas as pessoas que as usam poderiam sofrer da sua inexistência por muito da sua existência ser passada nesse mundo. Por isso, acabar com as redes sociais poderia tornar-se um choque maior do que o choque social que essas já criaram. Mas o metaverso ainda não chegou e prevejo que seja uma “réplica” do choque de manipulação da atenção e das massas que as redes sociais já criou. Creio que um recomeço do nosso relacionamento com o mundo natural seja a ponte mais segura para assegurar que as nossas funções cognitivas se mantenham saudáveis.
Queiramos ou não, a nossa cognição é, também, o suporte de uma vida espiritual profunda. A realidade virtual que o metaverso propõe pode ajudar muitas pessoas acamadas, ou com grandes dificuldades a encontrar algum sentido para as suas vidas e conforto, mas não sei se não estará a iludir o espírito e a incapacitar-nos para lidar com os sofrimentos da vida que são bem reais. Como aquela mulher-polícia, o resultado pode ser a escolha de uma vida vegetativa ligada à virtualidade. A plena realização da distopia do Matrix, onde Deus é mais uma opção de entretenimento.
No contacto com o mundo natural, Deus manifesta-se pela imersão que fazemos na grandeza do mundo físico real à nossa volta. Ninguém é dono desse mundo. Ninguém definiu um algoritmo sobre o que se pode ou não fazer. O mundo real é uma narrativa aberta, cheia de surpresas e novidade, fascinante e intrigante. Será o renovar do nosso relacionamento com a natureza que nos ajudará a saber aprender a lidar com a réplica do metaverso, depois do choque das redes sociais.
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