Algarve: Mensagem Quaresmal 2022

Felizes os construtores da paz (Mt 5,9)

1. Iniciamos a Quaresma, este ano marcada pela guerra que o governo da Rússia moveu contra a Ucrânia.

Uma guerra que viola os princípios mais elementares reguladores das relações internacionais de povos e nações e de defesa da dignidade da pessoa humana.

Uma guerra que provoca em todos nós sentimentos de perplexidade, consternação e desconforto. Perplexidade pelo fato de acontecer no continente europeu, em pleno século XXI; consternação pelo sofrimento e morte infringidos aos povos envolvidos, particularmente ao povo ucraniano agredido; desconforto pela incapacidade, daqueles que se lhe opõem, em silenciar as armas e impor o seu fim imediato.

Uma guerra que confirma a “loucura” e a “insensatez” de todas as guerras e que constitui um verdadeiro retrocesso civilizacional pela destruição e morte que provoca, com consequências, neste momento, ainda imprevisíveis.

2. A Quaresma que estamos a iniciar, com o convite habitual à conversão pessoal e comunitária, rumo à celebração da Páscoa de Cristo, surge como uma oportunidade para revermos o modo como nos situamos, face a todas as formas de agressividade e violência e, simultaneamente, como um incentivo a nos assumirmos como construtores da paz através de um compromisso pessoal permanente.

A paz é efetivamente um bem inestimável, a aspiração mais profunda da pessoa, condição essencial para o progresso e o bem-estar, fonte de segurança e de esperança no futuro. Nunca é demais recordar os quatro pilares indicados pelo Papa S. João XXXIII, na sempre atual encíclica Pacen in terris, como condição concreta e essencial para construir a paz e um oportuno instrumento de revisão de vida em tempo quaresmal: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. A palavra paz permanecerá uma palavra vazia de sentido se não encontra o seu fundamento na verdade construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade e realizada sob os auspícios da liberdade (cf. PT 166).

Mais recentemente o Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, recorda-nos que “a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais as três todas juntas para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas (…). De facto, a verdade não deve levar à vingança, mas antes à reconciliação e ao perdão. A verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos. A verdade é confessar o que aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência. A verdade é reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos. (…) Cada ato de violência cometido contra um ser humano é uma ferida na carne da humanidade; cada morte violenta diminui-nos como pessoas. (…) A violência gera mais violência, o ódio gera mais ódio, e a morte mais morte. Temos de quebrar esta corrente que aparece como inevitável” (FT 227).

Este propósito é tão nobre mas simultaneamente tão exigente que, apesar de toda a boa vontade, as forças humanas revelam-se frágeis para o conseguir. Precisamos do auxílio d’Aquele que “é a nossa paz … Veio e anunciou a paz aos que estavam longe e aos que estavam perto” (Ef 2,14-17).

3. Unimo-nos, como Diocese do Algarve, com toda a Igreja e toda a humanidade, às intenções e inquietações do Papa Francisco, neste tempo que a todos perturba e afeta, sobretudo ao povo ucraniano, que se vê atingido na sua própria casa, não lhe sendo reconhecidos e respeitados os seus direitos mais elementares, a sua identidade, a sua língua, a sua história, a sua cultura, os seus limites geográficos.

Vamos aderir ao apelo do Papa Francisco e fazer do próximo dia 2 de Março, Quarta-Feira de Cinzas, um dia de jejum e de oração pela restauração da paz na Ucrânia e em todas as regiões da terra.

Que este gesto de compromisso pela paz caraterize todo o nosso caminho quaresmal, como um tempo de reflexão sobre a nossa condição humana, de modo a nos deixarmos transformar pelo Espírito, como nos pede o nosso Programa Pastoral para este triénio, despindo-nos do homem velho e revestindo-nos do homem novo (cf Ef 4,22-24), à luz do Mistério Pascal, que nos preparamos para celebrar.

O Espírito Santo, Aquele que dá a vida, dom de Cristo ressuscitado, é verdadeiramente o obreiro de toda a conversão. Daí o pedido insistente de Paulo: não extingais o Espírito (1 Tes 5, 19), não vos acomodeis a este mundo. Deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus (cf. Rom 12,2).

A transformação operada pelo Espírito consiste em deixar as “obras da carne”: inimizades, discórdias, ciúmes, disputas, divisões, facciosismos, invejas… e assumir o “fruto do Espírito” que é amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão e temperança (cf Gl 5,19-24). Passar do “homem velho” ao “homem novo”, apoiados no encontro pessoal com Cristo ressuscitado e assumindo, com uma consciência renovada, a nossa condição de batizados, filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo.

4. A partilha fraterna, fruto da “renúncia quaresmal” e sinal desta “transformação” do coração, une-nos anualmente como expressão solidária com os mais necessitados. Nas duas últimas Quaresmas, limitados pela Pandemia, não nos foi possível realizar como gostaríamos esta partilha. Este ano, felizmente já mais aliviados, apelo à generosidade dos cristãos algarvios e de todos os homens de “boa vontade”, para respondermos aos pedidos que nos têm chegado: a Diocese de S. Tomé e Príncipe, a Diocese de Baucau (Timor) e o apoio ao povo ucraniano acolhendo as propostas da Cáritas Diocesana:

– A Diocese de S. Tomé e Príncipe, segundo carta do seu Bispo, encontra-se numa situação de grande necessidade económica, sem recur sos suficientes mesmo para a vida ordinária e quotidiana, pedindo “uma parte da nossa renúncia quaresmal”. O fato de acolhermos seminaristas desta Diocese no nosso Seminário no ano propedêutico, está a permitir-nos estabelecer laços fraternos mais profundos que, inclusive, podem conduzir a acolher um dos seus sacerdotes na nossa Diocese, já num futuro próximo.

– A Diocese de Baucau também solicitou o nosso apoio para a formação do seu clero…

– A Cáritas diocesana, a par duma campanha lançada pela Cáritas Portuguesa – Cáritas ajuda Ucrânia – dispõe-se a apoiar as famílias ucranianas no Algarve, que acolham familiares em suas casas, participando nas despesas de bens de primeira necessidade, tais como medicamentos, água, luz, gás… Tenhamos presente este ano o nosso apoio à Cáritas diocesana, sobretudo na semana que lhe é dedicada (14 a 21 março), como expressão da nossa proximidade e solidariedade com o povo ucraniano.

Possa este tempo quaresmal unir-nos no caminho da conversão pessoal, presente no compromisso quotidiano da construção duma paz duradoira, através do jejum, da oração e de gestos de misericórdia e de caridade para com todos. Como nos pede o Papa Francisco na sua Mensagem quaresmal: Não nos cansemos de rezar. Não nos cansemos de extirpar o mal da nossa vida. Não nos cansemos de fazer o bem, através duma operosa caridade para com o próximo. Enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos (cf. Gal 6, 9-10a).

Que o Espírito Santo, dom de Cristo ressuscitado, nos ilumine e fortaleça neste caminho, tornando-nos mensageiros do amor e da misericórdia do Pai. E que Maria, Rainha da paz, obtenha do seu Filho Jesus, o dom da paz para os povos da Rússia e da Ucrânia e para toda a humanidade.

Manuel Quintas, Bispo do Algarve

28.02.2022

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