Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Enquanto nos aproximamos do final de 2024, é fascinante observar como a tecnologia tem remodelado as formas de experiência religiosa, abrindo novas possibilidades para práticas espirituais e comunidades de fé. A convergência entre ciberespaço e religiosidade gerou um fenómeno singular: a ciberespiritualidade. Este é um tema que lentamente tem afectado o modo como vivemos, onde os limites entre o material e o digital se dissolvem para dar espaço a expressões de fé mediadas tecnologicamente. Porém, como preservar a profundidade da experiência espiritual num horizonte cada vez mais dominado pelo efémero do digital?
Metaverso Espiritual
O metaverso, que em 2024 consolidou-se como uma plataforma madura, tem sido usado para criar espaços virtuais de adoração. Igrejas, templos e mesquitas digitais oferecem experiências imersivas, permitindo que a fiéis de diferentes partes do mundo participar nos rituais religiosos em tempo real. Esses ambientes não apenas replicam estruturas físicas, como também inovam ao criar paisagens espirituais que transcendem a arquitectura tradicional.
As celebrações de final de ano no metaverso são um exemplo notável. Missas, meditações coletivas e festivais espirituais têm sido realizados com a ajuda de avatares (emulação virtual da nossa pessoa) e tecnologias que nos levam a viver o ambiente digital como muito próximo de um real, e permitindo uma experiência de comunidade que não depende da presença física. A integração de inteligência artificial nesses espaços também é uma tendência crescente, com assistentes virtuais a orientar a oração das pessoas ou a auxiliar a interpretação que fazem de textos sagrados. Parece existir uma App para todos os gostos.
Apps Espirituais
Cada vez mais vemos pessoas na missa com o telemóvel na mão de modo a acompanhar as leituras, usando a App do Secretariado Nacional de Liturgia para a Liturgia das Horas. Por isso, os aplicativos e plataformas digitais começam também a focar-se na dimensão espiritual da nossa vida. Através de ferramentas que pretendem ajudar-nos a guiar numa meditação ou oração, a tecnologia acaba por tornar-se em mais um canal para explorar e aprofundar a experiência religiosa. Em 2024, vários desses aplicativos passaram a incorporar a realidade aumentada, permitindo que o utilizador visualize cenários ou figuras espirituais enquanto pratica a sua fé. Até parece real, mas o virtual não é fruto de uma experiência material, mas algoritmizada, pelo que, o modo como o algoritmo é desenhado acaba por limitar a nossa experiência, retirando, na prática, espaço à interacção que podemos ter com Deus através do mundo à nossa volta.
Além disso, as redes sociais também desempenham um papel crucial ao transformar os influenciadores espirituais em líderes religiosos digitais. Muitos partilham mensagens de esperança e reflexões diárias, conectando-se com “seguidores” que buscam uma experiência de fé adaptada à vida moderna. Seria uma versão moderna e virtual das experiências feitas quando surgiram os primeiros movimentos de leigos após o Concílio Vaticano II, ou será algo diferente? A mediação digital implica sempre um ecrã programado. E mesmo que sejamos nós a desenhá-lo, apenas podemos trabalhar com as ferramentas digitais disponíveis até à última versão que o nosso dispositivo suporta. Uma experiência comunitária autêntica não tem esses limites. O único limite é o que impomos a nós próprios ao desenvolver o nosso relacionamento com o outro. Tudo isto acaba por gerar alguns dilemas éticos e espirituais.
Dilemas Éticos e Espirituais
A integração entre tecnologia e espiritualidade, embora promissora, levanta questões éticas relacionadas com a privacidade dos dados, especialmente em aplicativos de oração que podem acumular informações sensíveis. Além disso, a mediação digital pode diluir alguns aspectos tradicionais e comunitários de práticas religiosas, criando um paradoxo entre conexão virtual e distância emocional. O risco de nos desligarmos da realidade física é elevado quando a sala da nossa casa pode transformar-se no Grand Canyon sem a experiência completa dos odores, sons e ambiente exterior.
Um outro ponto de debate é o papel da inteligência artificial na interpretação de textos sagrados e na liderança religiosa. Embora as IAs possam oferecer interpretações acessíveis e inclusivas, também há o risco de que as simplificações ausentes de crítica não respeitem a profundidade dos textos e o impacte que o seu ressoar pode ter no nosso interior ao experimentarmos a sua leitura sem filtros digitais e no ambiente naturo-cultural que habitualmente nos rodeia. O que podemos esperar do horizonte digital na nossa viagem espiritual em direcção a 2025?
Perspectivas
O ano de 2024 marca um ponto de inflexão na relação entre tecnologia e religião com a evidente expansão da Inteligência Artificial. Apesar das novas tecnologias oferecerem caminhos inovadores para a experiência religiosa, existem desafios inevitáveis em relação à maneira como entendemos as tradições e a espiritualidade.
Parece-me que em 2025, a tendência será para que essas interações se incrementem e aprofundem. Espera-se que tecnologias como óculos de realidade aumentada (Apple Vision Pro, Meta Quest, etc.), bem como as interfaces cerebro-computacionais redefinam ainda mais o que significa experimentar o divino num mundo mediado pela tecnologia. Existem ainda poucos espaços para reflexão sobre os limites éticos e espirituais desta integração. Seria necessário criar mais espaços para nos mantermos ligados à realidade sensível.
Assim, como parte da experiência cibercultural do futuro, parece-me vital que continuemos a explorar e a examinar bem como podem as ferramentas digitais enriquecer a espiritualidade humana sem perder de vista os valores essenciais da experiência religiosa.
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