Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O Papa tomará a vacina, dizendo — «eticamente todos devem receber a vacina, é uma opção ética, porque está em causa a tua saúde, a tua vida, mas também a vida de outros.» Quando soube disto senti-me confirmado naquilo que me parecia ser sensato, mas fiquei a pensar em todas as pessoas cristãs católicas que ouvi insurgirem-se contra a vacina. Estarão, também, contra esta atitude do Papa? Ou será que o Papa apresenta uma leitura dos sinais dos tempos que custa alguns a aceitar?
Um dos problemas mais sérios levantado por alguns cristãos que se insurgiam contra a vacina foi a alegação de que o processo de investigação e produção das mesmas, teria usado linhas celulares de tecidos obtidos de dois abortos feitos no século passado. Diante desta dúvida, a Congregação para a Doutrina da Fé esclareceu em comunicado a 21 de dezembro de 2020 ser «moralmente aceitável utilizar as vacinas anticovid-19 que tiverem utilizado linhas celulares de fetos abortados no seu processo de investigação e produção.» E porquê?
«A razão fundamental para considerar moralmente lícito o uso destas vacinas é que o tipo de cooperação para o mal (cooperação material passiva ) do aborto provocado do qual derivam as mesmas linhas celulares, por parte de quem utiliza as resultantes vacinas, é remota .» Isto tem em consideração que, «a consciência certa de que o recurso a tais vacinas não significa uma cooperação formal para o aborto do qual derivam as células com que as vacinas foram produzidas.» Ainda assim, a Congregação para a Doutrina da Fé recomenda às farmacêuticas que «produzam, aprovem, distribuam e ofereçam vacinas eticamente aceitáveis, que não criem problemas de consciência.»
Quando vemos o número de pessoas cujo Natal de 2020, passado em família, sem cuidados nenhuns, foi o seu último, sinto uma tristeza enorme dentro de mim por saber que tudo isto podia ter sido minimizado. Se as pessoas tivessem mais calma, paciência e se desapegassem dos exasperos de curto-prazo para criar as condições de segurança que levam ao longo-prazo da vida daqueles que amamos, muita dor poderia ter sido evitada. É o que se designa por princípio da precaução. Isto é, quando uma acção pode originar um dano irreversível público ou ambiental, na ausência de consenso cientifico irrefutável, o ónus da prova encontra-se do lado de quem pretende praticar o acto ou acção que pode vir a causar o dano. Porém, havia um consenso científico de que o sacrifício de nos distanciarmos fisicamente, e cumprirmos com as normas de segurança em relação às máscaras, aos ajuntamentos, à higienização, reduziria a probabilidade da epidemia se alastrar. Logo, por que razão as pessoas arriscaram? Talvez seja uma questão de literacia dos sinais dos tempos.
A leitura cultural daquilo que se passa à nossa volta é o significado que estou a dar à expressão “literacia dos sinais dos tempos.” É um tipo de literacia que provém da nossa capacidade de dar — penso eu — cinco passos: observar, confrontar, relacionar, desapegar e antever.
É necessário observar o que se passa à nossa volta, estarmos atentos, mas não fazermos de imediato um juízo daquilo que observamos. Se olharmos para uma maça brilhante e reluzante, nada nos diz que o outro lado esteja igual, podendo ter, inclusive, uma dentada e o interior já a apodrecer. Observar significa mais do que tomar conhecimento, isto é, significa dar o próximo passo de confrontar.
Confrontar o que se observa significa ler a observação à luz da nossa experiência pessoal. Não é tanto à luz das ideias abstractas que temos, mas daquilo que vivemos na pele. Se nunca comi um kiwi, nunca poderei confrontar a observação com o sabor que têm. Só comendo poderei saber. Por isso, quando não tenho uma experiência pessoal que permita confrontar com a observação, preciso do próximo passo: relacionar.
É do relacionamento com os outros, que podem ter experiências de vida diferentes da minha, que poderei confrontar o que observo acontecer no mundo com a realidade experimentada, de modo a orientar o que penso numa direcção que me aproxime da verdade. Mas o que é a verdade quando entro em relação com pessoas com experiências completamente diferentes e, eventualmente, opostas? Preciso do quarto passo de desapegar.
Quem se desapega das suas ideias e até das suas experiências, vive livre para acolher a experiência do outro que pode ser diferente, ou até oposta à minha. Por vezes, o nosso desejo pretende sobrepôr-se aos sacrifícios que os tempos exigem para superarmos os desafios humanos, sociais e culturais. O desapego cria o espaço relacional para acolher várias experiências que nos ajudem no confronto com as observações que fazemos daquilo que se passa à nossa volta. O desapego pode ser, ainda, o resultado daquele que procura, genuinamente, compreender a narrativa que se desenrola diante de si e sobre a qual gera uma visão do mundo. E será essa visão que permite dar o último passo: antever.
A 6 de março de 1995, o tecno-optimista Kevin Kelly e o tecno-pessimista Kirkpatrick Sale fizeram uma aposta. Sale previa num livro que a sociedade colapsaria pelo abraçar que faz da tecnologia, e Kelly opunha-se a esse cenário distópico. Numa entrevista a Sale, Kelly perguntou-lhe, explicitamente, quando isso aconteceria, ao que Sale respondeu — “em 2020”. Kelly apostou $1000 que as previsões de Sale sobre o colapso falhariam. O que estava em jogo? Três coisas aconteceriam. Segundo Sale,
- um desastre económico desvalorizaria o dólar, causando uma depressão pior que a de 1930;
- a rebelião dos pobres contra os ricos;
- e um número significativo de catástrofes ambientais.
Pediram ao editor Bill Patrick que avaliasse dali a 25 anos quem teria vencido a aposta, e a 31 de dezembro de 2020, assim o fez. Quanto ao ponto 1, Patrick deu razão a Kelly. Quanto ao ponto 3, deu razão a Sale. E quanto ao ponto 2 considerou haver um empate, embora no limiar da previsão de Sale. Como a aposta do colapso social implicava, obrigatoriamente, a ocorrência de todas as três previsões, Patrick acabou por dar a vitória a Kevin Kelly. E Sale?
Sale recusou o resultado, disse que tinha ganho e não pagou a aposta a Kelly. Faz-vos lembrar alguma coisa? Porém, o que tem tudo isto a ver com antever? Existem certas pessoas neste mundo que através das suas histórias, ou até apostas, possuem uma sensibilidade particular para antever o caminho que certas decisões nos levam a tomar. Essa antevisão não assenta naquilo que não podemos controlar, mas nas escolhas que fazemos por estarem, intrinsecamente, relacionadas com os nossos valores. E aqui está o grande desafio da literacia dos sinais dos tempos. O que valorizamos?
A reflexão sobre os valores não se faz uma vez na vida, ou todos os anos no início, mas todos os dias e, nalguns casos, várias vezes por dia. Reflectir sobre os nossos valores não se faz, rapidamente, em cima do joelho, mas, pausadamente, com uma caneta e papel na mão. Mas não estão as mãos ocupadas com os dispositivos que nos proporcionam um entretenimento irresistível; ou uma pseudo-noção de compreender a realidade, só por se estar informado de tudo e de todos; ou um meio de expressar, imediatamente, e para muitos, a nossa visão da realidade, independentemente do grau de reflexão que possui?
Saber aprender a ler os sinais dos tempos é uma das capacidades mais importantes para evitarmos juízos precipitados (como não tomar a vacina), assumir os sacrifícios que a vida exige (como o distanciamento físico e os períodos de confinamento que se avizinham), e, sobretudo, muita, mas muita paciência. Aquela que só em Deus podemos viver plenamente e com a paz necessária. Aquela pela qual em nós cresce uma literacia dos sinais dos tempos autêntica, e que nos inspira as experiências reais de uma vida plena.
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