SABER APRENDER – A edificar as conversas digitais

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

«Ama e faz o que quiseres.» — diz Santo Agostinho. Mas será que a calúnia faz parte desse amor? Esta pergunta é incómoda e alguns podem estar neste momento a pensar que a pergunta não tem qualquer sentido porque uma calúnia não é um acto de amor. Porém, numa reflexão; em 2020 do bispo americano Robert Barron que, durante algum tempo, interagia com os “novos ateus” e lidava com os seus comentários negativos, notou essa mesma atitude nos últimos anos da parte de muitos católicos. E a experiência tem sido de tal maneira caluniosa que levaram o bispo Barron a afirmar — «eu prefiro os ateus.» É um sinal da cultura do desprezo que entrou na mente católica.

imagem de Alexander Shatov em Unsplash

No percurso sinodal tem-se feito um esforço para que a partilha das nossas experiências em relação ao modo de ser da Igreja e o que pode melhorar, se faça presencialmente. Mas é natural que muitas pessoas acabem por fazê-las nas redes sociais por ser o lugar digital onde sentem que a sua voz é ouvida (ou porque o conforto do sofá é irresistível?). Mas a reserva manifestada pelo bispo Barron não é isolada. Existem outros, como Jaron Lanier, pai da realidade virtual, e que conhece bem os meandros do Sillicon Valley, cuja experiência pessoal mostra como os comentários que, originalmente, podiam ser espaço de enriquecimento mútuo, tornam-se em verdadeiros adros de negativismo digital.

No final dos anos 1970, Lanier partilha que, por vezes, sem se dar conta, entrava num jogo de insultos nos comentários que nada tinham naquela altura de reacções como os “Gostos” ou qualquer algoritmo a quantificar o impacte de certos comentários no tempo de ecrã das pessoas, de modo a evidenciá-los. O insulto depressa passava a ser algo normal. Nas palavras de Lanier — «era o tempo meteorológico humano caótico». E para evitar as tempestades, ele acabava por fingir ser simpático e media todas as palavras que usava. Ou seja, “hipocratizava-se”. Como resolveu a questão? — «Parei de usar aquilo porque não gostava de quem me estava a tornar. Conhecem o adágio de que devemos escolher o companheiro(a) na base de quem nos tornamos quando estamos perto dessa pessoa? Essa é uma boa forma, também, de escolher as tecnologias.» Curiosamente, o bispo Barron tem uma proposta diferente relacionada com quem, na sua opinião, poderia ser o patrono da evangelização digital: S. Tomás de Aquino.

Tomás de Aquino procurava sempre criar uma conversação construtiva e inteligente. Isso significa escutar com respeito qualquer voz e pensamento, independentemente das suas convicções. Daí que S. Tomás entrasse muitas vezes em diálogo com filósofos pagãos, pensadores judeus, cientistas árabes, sem atacar os seus oponentes, mas apresentando os seus argumentos do modo mais persuasivo e claro possível. Para isso, apresentava também os argumentos dos seus opositores e, segundo alguns, de um modo mais persuasivo do que eles próprios. Que atitude pode S. Tomás inspirar ao católico que pretende comentar na vida digital?

«Antes de alguém carregar no “enter” e publicar algo nas redes sociais, ele ou ela deveriam perguntar-se a simples questão: “estou a fazer isto por amor?”» — afirma o bispo Barron sobre a atitude que esperaria de qualquer católico. E, seguramente, não está a pensar no amor próprio e às suas ideias, mas no amor ao outro. Na Fratelli Tutti, escreve o Papa Francisco,

«Muitas vezes confunde-se o diálogo com algo muito diferente: uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo. Mas os monólogos não empenham a ninguém, a ponto de os seus conteúdos aparecerem, não raro, oportunistas e contraditórios. (200)

(…) O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo.» (203)

A cultura do desprezo vivida por quem adere a Cristo gera uma contradição. Uma contradição assumida pelo abandono de Deus que Jesus experimentou na cruz. Para superar a tentação dessa cultura podemo-nos identificar com o sofrimento de Jesus, e pensar que entrar no jogo negativista dos comentários significa colocar-se na pele daqueles que escarnecem Jesus.

O “direito” ao comentário negativista é justificado com o baluarte da verdade e da liberdade de expressão. Recordo-me de quando fui à SIC em setembro de 2020, por convite, na sequência de um artigo que havia escrito sobre a reabertura das escolas após o verão, estando ainda em plena pandemia. Um dos comentários dizia — «Este fala Panao estar calado.» — e não posso esconder o quanto me ri e achei criativo. Talvez se fosse uma ofensa maior, não me teria rido e sentiria o efeito nefasto da calúnia. Apesar da cultura do desprezo afectar mais do que a cultura da edificação, não podemos descartar que existem pessoas que procuram o bem dos outros nos comentários que fazem, críticos ou não. O segredo está sempre na pergunta — «Estou a fazer isto por amor?»

Em “Sonhemos Juntos”, na terceira parte dedicada ao tempo para agir, o Papa Francisco diz ser — «(…) o momento de restaurar a ética da fraternidade e da solidariedade, regenerando vínculos de confiança e de pertença. Porque aquilo que nos salva não é uma ideia, mas o encontro. Somente o rosto do outro é capaz de despertar o melhor de nós mesmos. (…) Existe entre nós um laço que nos une e que, commumente, chamamos solidariedade. A solidariedade é mais do que actos de generosidade (…) é o convite a abraçar a realidade, unidos por laços de reciprocidade. Sobre esta base sólida poderemos construir um futuro melhor, diferente, mais humano.» Que o sonho de Francisco seja o nosso também. Mas, para isso, importa saber aprender a edificar as conversas digitais, de modo a oferecer uma cultura da conversação que, inspirada no exemplo de S. Tomás, saiba orientar a evangelização digital para os relacionamentos comunitários profundos que transformam a nossa vida numa que seja autenticamente plena.


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