SABER APRENDER – A desenvolver a literacia evangelizadora

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Um dos temas que poderia fazer parte da reflexão que estamos a fazer no caminho sinodal é o que chamo de Literacia Evangelizadora. Todos estão cientes de que o mais importante é viver o Evangelho, fazendo com que as pessoas pudessem olhar para a nossa vida e serem capazes de escrever algumas das suas frases sem nunca as ter lido. Mas quando tocamos no assunto da Evangelização é difícil escapar ao estigma e risco de sermos prosélitos. Isto é, de acharmos que a vida em Deus (no seio do catolicismo) é tão boa que todos as deviam viver. Ainda que tivéssemos razão, estaremos a pensar mais em nós ou nos outros?

Foto de Ashkan Forouzani em Unsplash

A Literacia Evangelizadora não é uma erudição em anunciar a Boa Nova aos outros, mas engloba tudo: o que conhecemos; o modo como falamos; e, sobretudo, o nosso estilo de viver o Evangelho. Não é preciso saber teologia, mas quando nos damos conta que o estudo abre-nos ao que o outro realmente é, talvez déssemos mais valor ao impacte que a teologia poderia ter para desenvolver a literacia evangelizadora. O dominicano belga Dominique Pire OP diz que — «é necessário que nos tornemos um só com os outros. Isso exige, pois, colocar o si mesmo, aquele que somos e o que pensamos, numa espécie de parêntesis, apreciar o outro de forma positiva, sem necessariamente partilharmos o seu ponto de vista. Há nisto um profundo sacrifício de si próprio.» Ou seja, o letrado evangelizador sabe colocar-se na pele do outro. Algo, creio, que se revela essencial neste caminho sinodal.

O papa Francisco tem referido desde o início do seu pontificado a importância de não termos medo de ir para as periferias e nos aproximarmos daqueles que estão longe. Mas a fase inicial deste percurso sinodal colocará muitos crentes a dialogar entre si e não ficaria admirado se houvesse opiniões divergentes por haverem experiências que divergem também entre membros da mesma comunidade. E o que importa a um, pouco pode importar a outro. Viver o ”profundo sacrifício de si próprio” significa acolher aquilo que o outro diz com profundo interesse e desejo de saber. Não é fácil. Há quem saiba falar e expressar o que sente, e há quem tenha dificuldade em fazê-lo. As tensões nos nossos diálogos surgirão porque uns consideram que o que temos é bom e suficiente, e outros sentem que as coisas devem mudar e, nalguns casos, radicalmente. E se o amor ao outro não for o primeiro e último pensamento subjacente a cada palavra, os riscos de cairmos em fundamentalismos é elevado. Mas como diz Timothy Radcliffe no seu livro ”A arte de viver em Deus”«diante do fundamentalismo estúpido e da sua inevitável violência, a melhor resposta é pensar.» Por isso, a literacia evangelizadora exige estudo.

Radcliffe diz que «o estudo é ainda mais santo do que a oração, porque na oração falamos a Deus, mas no estudo ouvimo-Lo.» — confesso ter ficado surpreendido com esta ideia arrojada. É seguro que sem oração será impossível assentar a vida sinodal na união com Deus. Sem oração, dificilmente estaremos sensíveis ao que Ele nos quer dizer através dos sinais dos tempos. Mas o estudo do ponto de vista de Radcliffe vai muito para além de um acto intelectual. Encarnar o estudo como o momento de escutar Deus faz da literacia evangelizadora uma experiência de escuta profunda, mais do que falar com erudição sobre o Evangelho.

Timothy Radcliffe esteve uma vez com o papa João Paulo II, e depois de pronunciar uma frase em polaco que havia memorizado disse esperar que a sua pronúncia polaca fosse melhor que a italiana (ele é inglês), ao que João Paulo II respondeu — «se o coração estiver aberto, a mente compreende.» Não há mal em reconhecer que, frequentemente, o nosso pensar gravita em torno daquilo que achamos ser a verdade, e o caminho a seguir, mas um estudo que nos faz crescer em literacia evangelizadora abre o nosso coração à possibilidade de deixarmos Deus nos tocar e transformar através daquilo que o outro é, incluindo o que pensávamos compreender. Mas se o outro não é perfeito, como pode Deus agir por ele?

Cada um de nós é uma ferida para o outro porque os nossos limites impedem-nos de comunicar do modo como o outro entende perfeitamente. Mas isso faz de nós irmãos na batalha da compreensão. E num pelotão verdadeiro, ninguém fica para trás. Serão os nossos limites que nos sensibilizam para a fragilidade que todos partilhamos. Por isso, se algo acontece de positivo, apesar das feridas que somos uns para os outros, encontraremos aí o sinal claro de uma literacia evangelizadora que coloca toda a sua forma de ser e estar em Deus.

A sensação que paira no ar no caminho sinodal é, ainda, de alguma incerteza em relação ao modo de caminhar. Os espaços que se abrem são ainda reservados a quem está empenhado e conhece-se. Temos medo de escancarar as portas para deixarmos qualquer pessoa manifestar a experiência de vida na Igreja. Temos medo de ter falhado e ninguém gosta de ser julgado por negligência. Mas por muito que nos custe ouvir os outros, quando o que dizem é pronunciado com amor, só pode ser acolhido por amor.

Todo o espaço relacional é um espaço de caminho sinodal. Não vale a pena esperar que nos convidem a participar num grupo específico para isso. Basta que dois ou três se juntem, e se amem, para que Deus esteja presente no meio deles. Assim, falarão do modo que todos conseguem entender-se, e escutarão do modo que não julga, mas acolhe. Pode ser num simples café com um amigo. Pode ser num intervalo com um colega de trabalho. O importante será guardar memória, escrevendo, o que surgiu nesses momentos para podermos partilhar quando for oportuno. Se o viver da Igreja que Deus nos inspira neste tempo é sinodal, estejamos cientes de que será um caminho que exige não só a parrésia (coragem de dizer o que pensamos) como a hipomoné (paciência e resiliência em permanecer a caminhar).


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