Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Imaginem que chegam junto de uma pessoa e começam por estender o cotovelo porque esse é o modo actual de cumprimentar alguém em tempo de pandemia. Mas essa pessoa olha-vos e diz que não compactua com essas práticas. Prefere o abraço, o toque. Eu também prefiro, mas quando um vírus infecta milhares, e mata dezenas de pessoas por dia, há que aprender que não precisamos de dar o braço a torcer, mas sim de aprender a dar o braço. Nem que seja através do cotovelo. Mas há fundamento para deixarmos de dar abraços?
Quando usamos gestos no momento em que cumprimentamos uma pessoa, o gesto exprime mais do que um simples “olá”. Por detrás do acto está uma mensagem como “quero-te bem”, “tenho saudades tuas”, “que bom ver-te de novo”. Mas subjacente a todos estes significados está o quanto desejamos proteger o outro. Pensemos, então, no abraço.
Existem doenças, como a constipação, às quais estamos mais susceptíveis quando vivemos momentos particulares de stress. É como se o stress baixasse as nossas defesas imunológicas. Sheldon Cohen, professor no Departamento de Psicologia da Universidade de Carnegie-Mellon nos Estados Unidos, coordenou um estudo que mostrou como o abraço funciona não só como suporte social para diminuir o stress, como aumenta, indirectamente, a capacidade imunológica das pessoas em relação a doenças como a constipação. Estudos como este mostram a importância fisiológica de um simples gesto. Mas como continuar a fazê-lo em tempo de pandemia?
Os gestos que fazemos, seja com um simples olhar, ou o cumprimento com o cotovelo que algumas pessoas criticam, fazem parte da linguagem não-verbal que antes da pandemia usávamos sem nos darmos conta. No contexto actual, são o modo criativo de desenvolvermos a capacidade para a empatia, e a consciência da importância de nos libertarmos de certos preconceitos. Isto é, preconceitos como o de que apenas com alguns gestos é que demonstramos o afecto pelo outro.
O contacto físico amigável é o suficiente para libertar uma hormona, a oxitocina, que promove os sentimentos de confiança e ligação com o outro. Não é uma reacção fisiológica a um gesto específico, mas basta um simples e respeitoso toque de amizade (incluindo o cotovelo).
Ficar privados de nos tocarmos pode aumentar os níveis de stress e depressão, daí a importância de procurarmos os modos mais seguros de nos podermos tocar, sem aumentar o risco de contágio, para evitar os cenários mais dramáticos. Mas será um abraço tão problemático assim? Eu pensava que sim, mas nestes momentos é importante perceber o que a ciência estudou sobre o assunto para entender o perigo.
A verdade é que no caso do coronavírus, não sabemos ainda a quantidade necessária de “consumo” viral para se ficar infectado. Há quem coloque a gama entre 200 e 1000 cópias do vírus. Ou seja é uma variabilidade muito grande. Em média, uma tosse pode libertar entre 5000 e 10000 vírus, mas um contacto próximo pode levar a um consumo de apenas 2%, representando 100 a 200 cópias do vírus. E se uma pessoa inalasse essa quantidade, apenas uma pequena percentagem é que a iria infectar. É claro que o risco aumenta com a quantidade de tempo de exposição, e varia muito de pessoa para pessoa, mas o que a especialista Linsey Marr da universidade Virginia Tech disse numa entrevista para o New York Times é que — «se não falar ou tossir durante um abraço, o risco deverá ser muito baixo.»
Esta leitura científica poderia descansar-nos, mas há uma nuance. Como a variabilidade é muito grande, a recomendação mais segura é a de evitar os abraços. Ou então, se não os conseguimos evitar, pelos motivos mais emocionais ou, simplesmente, sermos apanhados de surpresa pelo outro, o melhor é fazê-lo usando máscara e ao ar livre, evitando tocar no corpo e roupas do outro com a cara ou a máscara. Porém, um breve abraço, com as caras voltadas em direcções opostas, sem falar ou tossir, terá um risco mínimo, e convém higienizar as mãos a seguir. Mas há mais posições.
No caso das crianças, se a cabeça desta ficar à cintura do adulto, basta voltar a cara para o lado contrário ao dela. Para os jovens familiares ou amigos, mais baixos do que nós, um carinhoso beijo na parte de trás da cabeça é mais seguro. E se pudermos suster a respiração durante o abraço, melhor ainda. Como os abraços são sentidos, apesar de curta duração, suster a respiração até pode ser um exercício de amor.
Nos ambientes religiosos, há uma carga de emoção espiritual que pode ser perigosa se não for sabiamente contida. Alguns pensam que podem fazer tudo o que lhes apetece porque Deus protege. É preciso dar o “braço a torcer”, porque essa atitude revela consideramos Deus como mais um ingrediente na sopa cósmica, o que está longe da realidade espiritual mais profunda. Deus não é um químico que nos protege das pandemias. Essas fazem parte das limitações do mundo do qual fazemos parte, e não estamos à parte.
O que Deus nos deu foi o espírito criativo, ou não fossemos nós feitos à imagem e semelhança do Criador. Pela importância que tem o contacto físico na nossa saúde física, social e espiritual, todos os pre-conceitos sobre o que deve ser esse contacto devem ajustar-se à situação pandémica actual.
O ser humano sobreviveu ao longo da história pela capacidade de se adaptar às novas situações. Por isso, com uma máscara que nos cobre a maior parte da face: vale mais o sorriso dado pelo olhar; o amigável toque do cotovelo; ou o simples gesto de uma mão pousada sobre o coração, e um baixar respeitoso e terno da cabeça, como de quem diz com “voz” clara — «quero-te bem!»
Saber mais
- Cohen, S., Janicki-Deverts, D., Turner, R. B., & Doyle, W. J. (2015). Does hugging provide stress-buffering social support? A study of susceptibility to upper respiratory infection and illness. Psychological science, 26(2), 135-147. https://doi.org/10.1177/0956797614559284
- “How to hug during a pandemic”, Tara Parker-Pope, NYT, 4 de junho de 2020 (https://www.nytimes.com/2020/06/04/well/family/coronavirus-pandemic-hug-mask.html)