SABER APRENDER – A contemplar para além da pedra

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Descartes separou a mente do corpo com a intenção de compreender a existência, mas gerou uma vida a partir de uma ideia abstracta. O resultado foi a Grande Separação que se vive há centenas de anos entre o ser humano e a natureza. Basta. Há 50 anos, os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela lançaram uma teoria diferente: a autopoiese. Uma teoria que parte das observações da vida e aponta para uma unidade evolucionária entre mente e matéria. No dia 1 de setembro de 2022 começa o mês dedicado ao Tempo da Criação e chegou o momento de reconhecermos a Unidade da Criação.

Foto de Zoltan Tasi em Unsplash

Maturana e Varela olharam para a forma com a vida se organiza nos ecossistemas, em vez de a separar nos seus componentes e estudá-los individualmente. Assim, a vida revelou-se como um processo circular ininterrupto de auto-criação, de autopoiese. No seu livro “The Universe Story” (Harper Collins, 1994), o astrofísico Brian Swimme e o teólogo Thomas Berry referem que a autopoiese consta como uma das características do Princípio Cosmogenético sobre a evolução do universo, juntamente com a diferenciação e a comunhão. A autopoiese orienta-se para a potencialidade que cada coisa possui de participar directamente na criação do cosmos. Por isso, Swimme e Berry consideram a autopoiese como um termo que expressa uma dimensão interior das coisas revelando a criatividade intrínseca das mesmas. Mas outros cientistas, como Lynn Margulis, vão ao ponto de isso revelar algo sobre Deus.

Em vez de autopoiese, Lynn Margulis usa a palavra simbiose e no seu livro “Symbiotic Planet” (Basic Book, 1998), na senda da teoria de Gaia de James Lovelock que considera o nosso planeta como um organismo vivo, diz que — «os humanos não são a obra de Deus, mas de milhares de milhões de anos de interacção entre micróbios altamente responsivos.» Quer isso dizer que o amor que sinto pela minha esposa e filhos não é senão a obra de milhares de milhões de sinapses entre os neurónios do meu cérebro? Não me recordo do teólogo de quem ouvi este pensamento, mas a maior criação de Deus não foi o universo em si, mas a capacidade do universo se criar e re-criar ao longo do tempo. Não vejo maior liberdade do isso, apesar de suscitar dúvidas em pessoas cuja sensibilidade para a dimensão espiritual da vida seja menor.

Quando a nossa visão da Criação parte da unidade entre mente e matéria, a “verdade” não surge da ideia de uma pessoa, ou teoria, ou até da experiência pessoal, mas dos relacionamentos que estabelecemos uns com os outros, das nossas conversas, consensos, perdendo a nossa ideia para acolher a do outro e, assim, transformar as nossas ideias numa diferente que emerge do nosso relacionamento. Na autopoiese, a verdade não é uma ideia absoluta que se sobrepõe a todas as outras, mas uma ideia que aceitamos e nos transforma interiormente. Depois, será a transformação interior que se torna gérmen da realidade à nossa volta, como fazia o artista Michelangelo.

Conta-se que uma dia, Michelangelo respondeu a uma pergunta sobre a forma como esculpia que — «a escultura está já completamente feita no interior do bloco de mármore, antes de começar a trabalhar. Já lá está. Eu apenas tirei o que estava a mais.» — e esta percepção levou-me a pensar em todas as imagens, esculpidas em pedra ou madeira, que levam tantos crentes a ajoelhar-se e a rezar a Deus por intercessão do santo que nesses materiais tomou forma pela mão e talento de alguém. O que nos impede de rezarmos juntos diante uma grande pedra na encosta de uma montanha e percepcionar que imagem habita o seu interior? Ou no interior de um grande ramo de árvore? A diferença é não termos o jeito ou o tempo de Michelangelo, caso contrário, não poderíamos esculpir a imagem e levar outros a rezar na sua companhia? O que é mais real? Uma imagem esculpida ou uma que se esconde no interior da matéria? O que tem tudo isto a ver com a autopoiese?

A intenção de Maturana e Varela com a autopoiese foi a de desenvolver uma teoria da cognição que expressasse a ligação entre a biosfera (esfera da vida física) e a noosfera (esfera da vida mental ou consciência). E muitos poderão questionar-se sobre o valor que este tipo de ideias pode ter para nos ajudar a viver o Tempo da Criação. Porém, pelo que podemos aprender com Michelangelo, esse valor depende da nossa capacidade de saber aprender a contemplar para além da pedra.

Desde Peter Kropotkin (1842 – 1921) que a cooperação emerge como mais evolucionária do que a ideia da competição. E se quisermos perceber como podemos cooperar com a natureza para além de nós a um nível mais mental, será muito difícil. As pedras não pensam, nem as árvores falam e nem sempre compreendemos a mente da espécie humana, como haveríamos de compreender a mente das outras espécies animais? A cooperação com a natureza na evolução cultural do mundo faz mais sentido a um nível experiencial da realidade que seja mais profundo que o mental, como seria o caso do nível da espiritualidade. Isto é, ao nível da ideia subjacente à Unidade da Criação penso que esteja a ideia de sermos uma só família. E, numa família, parece-me que o mais essencial seja o sentido de presença.

A escritora Nan Shepherd (1893 – 1981) quando escreveu “The Living Mountain” (Canongate, 2014) mostrou como conhecia os Cairngorms mais em profundidade do que em extensão. Por isso, Shepherd dizia que,

«Existe um algo mais no desejo intenso pelo topo de uma montanha do que somente um perfeito ajuste fisiológico. Esse algo mais que existe reside no interior da montanha. Algo move-se entre eu e essa. O lugar e uma mente podem interpenetrar-se até que a natureza dos dois se altera.»

Que intimidade reveladora de como uma experiência de contemplação pode levar-nos a ver para além da pedra e a sentir uma presença. E parece-me que se abrirmos o coração à dimensão espiritual que o Tempo da Criação nos convida a viver, poderemos não conseguir tirar da pedra o que está a mais, mas creio que Deus presente na criação revelar-nos-á a realidade que se esconde no seu interior.


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