Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
À meia-noite, o HMS Saunders-Hill navegava serenamente pelo rio Tamisa em Inglaterra quando todos sentiram um choque violento. A tripulação acorda, levanta-se e tenta perceber o que fazer. As pessoas gritavam e o escuro da noite dificultava ainda mais o esforço da tripulação para se dar conta do que havia acontecido. Aparentemente, um navio de carvão errante colidiu com o Saunders-Hill, partindo a sua âncora no choque, impulsionando-o a entrar em deriva ao sabor da corrente do rio Tamisa. As boas notícias eram que o navio mantinha-se à tona sem afundar. Um passageiro, James Holman, antigo marinheiro da Royal Navy, dirige-se ao leme para ajudar o capitão, mas o capitão não estava lá e o leme rodava livremente. Então, Holman toma consigo o leme e sob as indicações do capitão que estava noutro sítio a acudir aquela emergência, consegue levar o barco a porto seguro. Só quando o capitão chegou junto de James Holman para o felicitar é que se apercebeu de que ele era cego.
James Holman foi o primeiro cego a dar a volta ao mundo, mas se não fosse capaz de estar sensível ao ambiente ao seu redor, ao som, cheirou ou toque, não teria chegado tão longe quanto chegou. Não cedeu aos seus limites, mas usou-os para atravessar os terrenos mais inóspitos ou subir as montanhas mais agrestes. Imagino James no pico de uma montanha a contemplar o horizonte. É cego, mas isso não limita a sua contemplação porque ele contempla com os seus limites. Que percursos faríamos se neste Tempo de Criação contemplássemos com os nossos limites?
Para muitos de nós, contemplar é ficar parado, em silêncio, e a olhar com profundidade para o que está diante de nós. É fácil imaginar alguém a contemplar uma pintura, mas não se for cego. É fácil imaginar alguém a contemplar a melodia de canto, mas não se for surdo. Porém, se travarmos amizade com um cego, percebemos como “vê” o mundo como nós (que vemos) não conseguimos ver. E o surdo “escuta” o mundo como nós (que ouvimos) não conseguimos escutar.
Em 1994, o jornalista Andrew Solomon foi convidado pelo New York Times a escrever um artigo sobre uma cultura no mundo dos surdos, onde as pessoas distinguiam “Surdez” de “surdez”. Com “S” maiúsculo, a Surdez é a cultura daquele que contempla no silêncio, enquanto a surdez com “s” minúsculo descreve aquele que sofre de uma perda patológica de audição. A “Surdez” seria semelhante ao que alguns investigadores definiram como ”Ganho Surdo” (Deaf Gain) onde se compreende a surdez como um ganho pessoal e social. Estes investigadores reconceberam a surdez, não como uma perda, mas algo que adiciona diversidade à vida humana (Dirksen, Bauman, Murray eds. “Deaf Gain: Raising the Stakes for Human Diversity”, University of Minnesota Press, 2014). Será que contemplar no Tempo da Criação usando os nossos limites pode abrir a uma nova cultura de união com Deus onde os limites não sejam um obstáculo, mas um trampolim?
O maior limite que as pessoas, aparentemente, parecem ter, nem sequer é material: o tempo. Ninguém tem tempo para as coisas que a maior parte das pessoas considera inútil, inclusivé — receio — contemplar no Tempo da Criação. Os limites que sentimos no tempo devem-se à quantidade de “sim”s que demos a compromissos que por atrasos ou inesperada sobreposição começam a consumir demasiada energia e atenção. Por isso, é natural chegar ao fim do dia (ou até a meio do dia) e ser muito difícil pensar em qualquer acto de contemplação da criação. E mesmo os intervalos que temos, muitos aproveitam para tratar de expediente, ou seja, coisas rápidas como enviar a uma mensagem, responder a um email, ler aquela notícia guardada há dois dias no browser, etc.
Tempo. Usamo-lo, tentamos controlá-lo ou sentimo-lo escapar por entre os dedos (metaforicamente falando, claro). Contemplar o limite da falta de tempo que temos seria o quê? Como poderíamos usar o tempo limitado para gerar uma nova cultura de contemplação no Tempo da Criação e, assim, chegar a uma maior união com Deus?
Aqueles que fazem coisas extraordinárias apesar da sua cegueira ou surdez, conseguiram perceber que os limites não os tornam menores, mas diferentes. São especiais porque têm de criar modos novos de interagir com o mundo. Na série See (Ver) da Apple, imagina-se um mundo onde o ser humano deixou de ver. Isto é, a maioria da humanidade é cega e isso significou acolher ser-se diferente e recriar o mundo à sua volta. Só tenho pena da série explorar mais a versão violenta desse mundo do que a criatividade da descoberta, mas tenho esperança de essa seja mais próxima da vida real do que da ficção.
Para ser sincero, quando contemplo a falta de tempo, lembro-me de tudo menos do Tempo da Criação. E às vezes penso que poder ver, ouvir, cheirar, tocar ou falar é a razão de ter tanta falta de tempo porque os outros esperam tudo e mais alguma coisa de mim, que pareço não ter grandes limites. Consideram-me, de certo modo, ilimitado e carregado-me com mais coisas e tarefas, acabam por limitar-me. E eu deixo-me limitar com uma má gestão dos “sim”s, perdendo a sensibilidade para a necessidade de viver bem cada momento, sobretudo neste Tempo da Criação.
Em certa medida, pergunto-me se contemplar os limites será aceitar que a imperfeição que torna cada pessoa diferente das outras, possa revelar-se uma virtude. É estranho contemplar o espaço vazio entre duas árvores. O mais óbvio é contemplar as árvores. Por isso, será que os limites assemelham-se mais ao espaço vazio, ou mais às árvores que parecem estar a bloquear a vista, limitando-a? Saber aprender a contemplar com os nossos limites talvez passe por reconhecermos que esses tornam-nos diferentes um dos outros, e convidam-nos a precorrer caminhos de originalidade porque também nós fazemos parte da Criação cujo tempo celebramos.
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