Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Uma flor no meio de um deserto é um ícone contemplativo da vida a partir de uma paisagem de escassez e, aparentemente, de morte. Apesar do caminho da paixão de Cristo ser um convite à reflexão sobre os excessos, a parar para re-centrar o nosso olhar, sentir e agir sobre o que tem valor, a meta é a vida a partir da ressurreição. Porém, com esse momento da história do cristianismo e — diria — da história humana, Deus baralhou a nossa cabeça habituada às coisas terrenas, e não cessa de nos surpreender, de cada vez que pensamos nas coisas que estão para lá das terrenas. A ressurreição veio dar uma dimensão contemplativa à vida a partir da morte que não estava à espera.
Em 2007, fui com a minha família a Montet, uma pequena vila na Suíça francesa, e ficámos instalados numa casa ligada a uma escola de formação que tinha próximo um pequeno cemitério. As flores que nasciam em volta das campas transmitia-me mais do que simples beleza. Era uma experiência autêntica de contemplação da vida alimentada por aqueles que a terra consumia após terem morrido. Desde aquele momento, os cemitérios deixaram de ser, para mim, lugares de morte, mas miradouros da vida quando deixamos que a natureza interaja com aqueles que voltaram ao pó da terra.
No norte da China, os cemitérios formam uma autêntica paisagem cultural. As campas daqueles que descansam em paz são deixadas em paz, e a natureza segue o seu curso, livre das ideias humanas de saber como se deve cuidar desse espaço. O resultado é notável. A riqueza do número de espécies vegetais e animais é enorme. As famílias chinesas visitam os familiares que partiram uma vez por ano (como nós no dia 2 de novembro, Dia dos Fiéis Defuntos), mas durante o ano deixam que seja a própria natureza a cuidar do cemitério. Assim, esse torna-se mais um símbolo de vida do que de morte.
A diversidade da vida depende de uma complexa rede de relações entre recursos e espécies, e quanto mais espécies viverem num determinado ecossistema, maior é a sua produtividade e resiliência. E se a natureza desperta dentro de nós um desejo daquela suave brisa que refresca o rosto, esse desejo expressa o anseio que temos de um maior contacto com essa. No seu livro Wilding, Isabella Tree diz que devíamos — «abrir a caixa, deixar que os processos naturais se desenvolvam, dando amplo espaço às espécies para que se expressem [com] minima intervenção. Deixar que a natureza se revele. E o resultado será um ambiente que desconhecemos.»
O bispo da Igreja Ortodoxa, Ioannis Zizioulas, que apresentou a Laudato Si’ do papa Francisco, diz que — «a superioridade dos seres humanos (…) não consiste na razão que eles possuem, e sim na capacidade de colocar-se em relação, de modo a criar situações de comunhão a partir das quais os seres individuais são libertados do seu ser voltado sobre si mesmos (…) e passam a ser referidos a algo mais geral do que eles mesmos, a um “outro”.» Por isso, ao pensar nestas palavras e nos cemitérios como lugares de paz onde a natureza se revela tal qual é, relembro os que foram entregues à terra que, apesar de mortos, continuam a dar vida.
Os lugares inóspitos dentro de nós, onde a secura das ideias nos desorienta, ou a ausência de emoções endurece o coração, são desertos interiores que se tornam difíceis de esconder para nós próprios, a não ser que vivamos alienados com demasiado entretenimento. Interiormente, não somos como a natureza e, por nós mesmos, não conseguimos sobreviver e fazer florescer a vida a partir da morte interior. Ou será que podemos?
A natureza que desabrocha nos cemitérios não vive para si mesma, mas vive para a rede de relações que estabelece porque encontra a paz suficiente para isso. Mergulhados em tarefas e mais tarefas, compromissos e encontros virtuais, sobra pouco espaço e tempo para deixar a vida interior fluir e amadurecer. Agora que penso nas pessoas cristificadas em vida, ao serem acolhidas pela terra, tornam-se eucaristia para o cosmos. Logo, o que poderá Jesus fazer em nós quando o recebemos em vida e nos transformamos n’Ele? Quando comungamos, não seremos nós a terra onde Ele dá a Sua vida como hóstia para nos transformar a partir de dentro? Por que razão nos sentimos, então, na mesma como a lesma? E mais ainda agora que muitos não podem comungar fisicamente o Senhor?
Os cemitérios dão lugar à biodiversidade porque nos retiramos e deixamos de controlar o ambiente. A nossa noção de beleza é muito diferente da noção da natureza. E a noção da natureza gera mais biodiversidade que a nossa. Será que o deserto interior provém da incapacidade de não abdicarmos do controlo que exercemos sobre o interior de nós mesmos? Talvez o impulso a controlar as transformações que ocorrem na dimensão espiritual da nossa vida, nos impeça de acolher aquilo que Deus quer fazer em nós a cada momento.
Os sinais exteriores que deslumbram o nosso olhar são de tal modo dinâmicos, com cores vivas e saturadas, que nos dão uma sensação de saciedade. Mas é exterior. Interiormente, se não acolhermos aquilo que Deus quer em cada momento presente, acabamos por secar e dar vida a um deserto, ainda que não nos demos conta disso. Por isso, nos períodos propícios a olhar para dentro, custa, e desviamos o olhar.
É preciso morrermos para nós próprios, e fazer da morte do “eu” um lugar onde deixamos que a natureza espiritual se revele e a noodiversidade floresça, isto é, a diversidade da consciência (nous). Essa não subsiste por si mesma, mas precisa de entrar em relação com as outras consciência pela partilha e diálogo e, sobretudo, pela sensibilidade à presença d’Aquele que nos criou. Deus convida-nos a saber aprender a contemplar a vida a partir da morte de nós mesmos para experimentarmos a unidade na noodiversidade que é a vida da Trindade em nós e entre nós.
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