Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
As pessoas andam confusas e, em parte, a culpa é dos cientistas, mas não podemos esconder a impressão de que a literacia científica das pessoas podia estar mais desenvolvida. As pessoas têm a ideia de que ciência são fórmulas matemáticas, mas é muito mais do que isso. Ciência é um modo de compreender o mundo. Quando a pandemia começou, os cristãos por todo o mundo rezavam para que houvesse uma vacina. As empresas farmacêuticas, laboratórios de investigação e Universidades fizeram um esforço tremendo e sem qualquer precedente na história para encontrar uma solução. Agora que a temos, há quem faça bandeira de não se vacinar. Depois, alguns cientistas falam do contraponto e vêm a público dar a sua opinião, o que é bom, mas como minoria (e por ser uma história diferente, logo sensacionalista), é-lhes dada uma importância que leva as pessoas a pensar que não existe acordo entre os cientistas. Não é verdade.
Existe consenso no valor que as vacinas da Covid tem para pôr termo a esta pandemia. A Comissão Teológica Internacional já se pronunciou em relação às implicações éticas do seu fabrico e não há qualquer problema. Ninguém está a matar embriões para produzir estas vacinas. Depois, há quem ponha em causa a técnica mRNA e que efeitos tem sobre o nosso corpo. Os únicos efeitos são os de educar o corpo a proteger-se deste vírus. O curioso é que o sucesso verificado com esta técnica está a abrir portas para que seja usada na protecção contra outras doenças, incluido o câncro. Logo, só vejo motivos para dar graças a Deus pela inteligência que deu aos que desenvolveram este método. Mesmo assim, as pessoas continuam a ficar receosas de cada vez que ouvem um médico (isolado) a fazer um alerta e a dizer que existem outras soluções que não esta vacina. Como cientista, costumo ir às fontes (revistas científicas) e tudo o que encontro é inconclusivo. Mas o que quer isso dizer em ciência?
Em ciência existem várias escolas de pensamento que geram teorias e métodos diferentes para a compreensão de uma mesma realidade da vida. Em particular nas ciências biológicas, a validação das teorias depende muito das coisas acontecerem muitas vezes e, por isso, a maior parte das análises são estatísticas, logo, um desafio. Faz-me lembrar aquela anedota quando perguntam ao engenheiro mecânico quanto é 1+1 e ele responde “2”, ao engenheiro informático e ele responde “2.0” e quando chega a vez do contabilista responder, diz — “quanto é que quer que dê?” Não tanto por usar estatística, mas pelo facto dos resultados estatísticos poderem ter leituras muito diferentes no particular, apesar da tendência que oferecem quando considerados na generalidade. Quando se falam em eficácias diferentes de 100% quer dizer que existem sempre casos pontuais que fogem à regra, mas isso não justifica não confiar na ciência.
Um outro ponto de desconfiança é o financeiro. A margem de lucro de uma empresa farmacêutica segundo pude apurar numa notícia; da BBC em vacinas é de 20%, mas empresas com a AstraZeneca não chegaram a tanto procurando vender as vacinas quase a preço de custo. Mas a média da margem de lucro das empresas da Zona Euro é de 40%(!) Por que razão haveríamos de pensar que uma empresa farmacêutica não fizesse lucro como qualquer outra empresa no mundo, independentemente da sua dimensão? Faz sentido o café da esquina não querer fazer algum lucro? Mas há algo que me deixa ainda mais perplexo. As empresas das redes sociais que têm sido as grandes propagadoras da desinformação, semeando mais joio do que trigo porque os algoritmos não têm qualquer sentido moral, e sendo usadas por alguns para manipular as escolhas de outros, conseguem consumir a atenção de biliões de pessoas e o resultado são margens de lucro de quase 36% no caso da Meta;. E pelos estudos que tenho lido dos malefícios que as redes sociais fazem à saúde mental, por que razão as pessoas incomodam-se com os lucros das farmacêuticas por causa de uma vacina que faz bem à nossa saúde, mas não se importam de continuar a alimentar as empresas do Silicon Valley cuja nossa saúde é a menor das suas preocupações? Mas existe algo que pouco se fala em relação aos que estão contra a vacina covid, ou contra as alterações climáticas, isto é, semeiam a desconfiança em ciência.
O que querem as pessoas que promovem ideias contra a vacina covid ou as que se insurgem contra as alterações climáticas? Visualizações. A simples busca de protagonismo disfarçada de um discurso que pretende dar a voz a quem não tem, quando isso não é o que se passa nas comunidades científicas.
Toda a ideia que possui um fundo científico credível é explorada por algum grupo de investigadores algures no mundo. Somos muitos. Por isso, quando alguém vem a público dizer que existe um tratamento para a Covid, mas a comunicação social e as farmacêuticas andam a calar, sinceramente, é de desconfiar porque tudo está a ser feito para ultrapassarmos esta pandemia. Os tratamentos que as pessoas por vezes falam geram resultados inconclusivos quando estudados como aconteceu com a validade do plasma convalescente reportado num artigo; da conhecida Nature. E ainda, muitos dos tratamentos experimentais só podem ser feitos nos hospitais para serem devidamente acompanhados. Imaginam o que seria se cada dor de cabeça implicasse ir ao hospital para ser administrada a cura? Seria incomportável. Precisamos de mais calma e tempo.
Naomi Oreskes enfrenta esta pergunta no seu excelente livro “Porque confiar na ciência?” (Gradiva, 2021) e explica que o consenso científico existe em muitos assuntos que o público pensa estarem em causa, mas isso é o fruto daqueles cujo propósito não é tanto o de esclarecer as pessoas quanto o que pôr a ciência em causa em nome do protagonismo que, de outro modo, não teriam. Diz Naomi que — «por vezes, um “céptico” é apenas um mau perdedor.» E numa outra parte diz que — «sem esta confiança nos peritos, a sociedade paralisaria. Os cientistas são os nossos peritos no estudo do mundo. Por conseguinte, a confiar em alguém para nos falar do mundo, devemos confiar nos cientistas.» O que falta? Duas coisas
Às pessoas falta uma literacia científica mais desenvolvida. Num mundo imerso em informação é fácil confundir estar informado com compreender o conteúdo e as implicações dessa informação. Depois, uma voz dissonante, mas que entra no nosso coração dizendo que o mundo a quer calar, desperta em nós o sentimento de estarmos sempre com os últimos e os mais desfavorecidos. Mas um cientista assim não tem justificação para ser um “coitadinho”. Faz-me lembrar a experiência de Suzanne Simard quando dizia que as árvores relacionavam-se entre si e que não podíamos afectar uma espécie sem afectar todas as outras. Era uma voz dissonante, mas pouco a pouco, vários cientistas por todo o mundo foram confirmando os seus resultados e, hoje, compreendemos existir uma wood wide web nas árvores através de fungos mudando a visão que temos das flora, humanizando-a como diria o teólogo Jürgen Moltmann. Aos cientistas falta comunicarem melhor. Pois, caso contrário, como se espera desenvolver a literacia científica nas pessoas?
Os tempos da ciência são diferentes dos tempos das gratificações instantâneas no mundo digital. E se queremos saber aprender a confiar na ciência, devemos estar mais atentos ao consenso do que às particularidades. Nas coisas de Deus acontece muitas vezes o inverso, mas isso é outra história.
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