SABER APRENDER – A comunicar o que vivemos

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Quando o governo pediu que restringíssemos os movimentos e contactos nos períodos de Natal e Ano Novo, o resultado daquilo que experimentamos hoje só pode advir de muitos terem procurado as lacunas nas entre-linhas das excepções que lhes permitiam fazer o que queriam. Os especialistas em epidemologia, e áreas afins à transmissão da Covid-19, procuraram comunicar o que sabem, e expressaram os seus receios em relação à abertura das escolas, mas parece que temos de sofrer e morrer para tomarmos as decisões certas para nos proteger. Tudo assenta na capacidade evolutiva de comunicar. E só quando tomamos consciência de como comunicar é comunicarmo-nos, que percebemos a importância, em tempos incertos como este, de comunicar o que vivemos.

Foto de Taylor Deas-Melesh em Unsplash

Uma pessoa pode ter uma ideia sobre qualquer assunto, mas quando o comunica, importa confrontar, antes, essa ideia com a sua experiência de vida. E se não a tem, o melhor é travar a comunicação dessa ideia. Em ciência, existe o princípio da parsimónia em que um cientista só pode afirmar o que pode verificar. Subjacente ao princípio está o cruzamento entre as ideias e as experiências. Por isso, tenho sempre dificuldade em entender algumas ideias políticas sobre transportes públicos vindas de quem não os usa, ou sobre o uso das máscaras vindas de quem não as estuda (ou usa).

Recentemente enviaram-me um áudio que vim a perceber ser uma homilia disponível em vídeo, feita por um sacedote do Priorado de São Pio X, os Lefebvristas que estão ainda em processo de reintegração na Igreja Católica, seguindo uma linha antiga na liturgia coma a missa de costas para a assembleia, etc. Usualmente, não sendo de uma linha de espiritualidade que partilho, embora se afirme como Católica, a minha primeira impressão é sempre de reserva. Quando alguém afirma que as máscaras não são eficazes e relaciona isso com ciência, claramente confundiu eficácia (protege ou não protege), com eficiência (protege mais, ou protege menos, mas protege). Ainda assim, num recente artigo da Nature , confirmava como as máscaras reduzem, substancialmente, o risco de contágio. Por isso, também aqueles que dão a sua vida por amor ao Evangelho, e se entregam ao ministério sacerdotal, seja em que tradição religiosa for, são responsáveis pela comunicação que fazem, e as leituras de material científico por pessoas que não têm experiência científica, podem tornar-se superficiais, ou mesmo incorrectas na interpretação. O que teria levado este amigo a partilhar-me aquela homilia?

Há pessoas que pensam que muitas das recomendações que se estão a fazer em relação à travagem desta pandemia são manobras de engenharia social, como seria o caso do uso das máscaras. Diz este sacerdote que as autoridades internacionais «adoram cerimónias ocultistas», isto é, de simbolismo, mas quando se usa a palavra ocultista, o seu significado liga-se ao paranormal. Logo, por que razão haveriam as cerimónias internacionais ter um teor paranormal? De facto, a cerimónia de abertura de um túnel que unia a Suíça à Itália em 2016, teve uma representação repleta de símbolos ocultistas que, aparentemente, parecem fazer parte da história do país. Mas associar essas máscaras com sentido ocultista, às máscaras que usamos para mitigar esta pandemia, sugerindo que estaremos a contribuir para uma tal engenharia social é, minimamente, ridículo. O que me deixa mais perplexo é ser um vídeo que tem dezenas de milhares de visualizações, e ter sido partilhado como algo credível.

Estamos cansados das máscaras? Sim. Mas estou mais cansado destas fontes de desinformação. É a meio do vídeo fiquei a pensar se este amigo o terá escutado até ao fim. Pois, a um dado momento, afirma-se que a pandemia já acabou e não morre mais ninguém. Era 16 de Agosto de 2020. Estamos em fevereiro de 2021 e há dias faleceu o pai de dois grandes amigos por causa desta doença. Por que razão ter-me-á este amigo enviado esta homilia nesta altura? Não nos iludemos para não nos desiludirmos.

Se pela eucaristia somos cristificados e deixamos que Jesus nos transforme, significa que em cada momento somos chamados a ser testemunhas de como Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Mas ser caminho, verdade e vida neste período exige de nós uma capacidade de comunicar com o que vivemos, em vez de ilusões daquilo que gostaríamos de viver. A vida possui uma autoridade própria quando a comunicamos, e penso em três coisas que podemos fazer como expressão daquilo que podemos ser.

Sermos caminho de gratidão. Estar gratos por algo, por alguém, pelo amor de Deus e ser explícito quanto a isso, é uma força transformadora da sociedade. Eu não tenho redes sociais, mas ouvi um médico sugerir que se publicasse uma vez por dia, durante uma semana, no mural, uma frase de gratidão, faria uma grande diferença. Quem não está presente nas redes sociais pode começar um Diário de Gratidão, e nele escrever uma frase por dia. Porém, saber aprender a comunicar o que vivemos pode inspirar-nos a viver a gratidão no quotidiano, agradecendo com um sorriso quem nos vendeu o pão, ou sorrir e agradecer a quem parou na passadeira para atravessarmos a estrada, ou ainda agradecer ao esposo, esposa, ou filho, a refeição que preparou.

Sermos curiosos pela verdade. As coisas que escutamos e nos fazem franzir o sobrolho por discordarmos são uma oportunidade de ir ao encontro da verdade. E no mundo da internet, apesar da muita desinformação que circula, exsitem sites de instituições credenciadas que nos podem ajudar a entender melhor os eventos da narrativa que vivemos. Depois, poderemos comunicar a curiosidade que vivemos aos que estão à nossa volta e inspirá-los a entrar na aventura da procura pela verdade.

Sermos transmissores da vida profunda. A humildade é a característica humana daquele que reconhece quem é, e não pretende mostrar-se como diferente daquilo que é. E, neste momento de grande sofrimento, se formos humildes em relação ao que não sabemos, aprenderemos a comunicar uma vida profunda através dos gestos humildes de quem reconhece ter muito ainda para aprender.

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