SABER APRENDER – A apreciar o ócio

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Jesus ficou irritado com o efeito que o negócio estava a ter sobre a vida espiritual das pessoas do seu tempo. Expulsou o negócio do templo e qual o motivo? O Comércio. Os bens espirituais, o espaço de encontro com Deus, e o tempo em que nos encontramos para estar com os outros em oração, não são comercializáveis. Mas ao escutar esta passagem que nos impele a reflectir na quaresma, lembrei-me de algo não comercializável, mas que talvez não ocupe o espaço e o tempo que poderia ocupar no templo que é o nosso corpo: o ócio.

Na definição desta palavra encontramos tanto a “preguiça”, como a “ocupação agradável em momentos de folga”. Por isso, o modo como procuramos que essa palavra crie um impacto positivo na nossa vida depende muito do contexto. Por outro lado, na lógica, uma dupla negação é uma afirmação. Assim, o ócio é a negação do neg-ócio, isto é, da tomada de consciência de que existem valores na vida que não são comercializáveis. Por exemplo, a nossa atenção.

Em 1965, no MIT, uma conhecida universidade americana, os computadores tinham instalado um programa chamado “MAILBOX”. Os utilizadores deixavam mensagens no computador de outras pessoas usando este programa. E essas pessoas viam as mensagens somente quando se ligavam ao computador. Por esse motivo, o sistema só funcionava se as pessoas usassem, regularmente, o mesmo computador. Hoje, para nós, esta comunicação assíncrona é um dado adquirido, mas não naquele tempo. Em 1971 será Ray Tomlinson que inventará o “correio eletrónico” ou “email” (de electronic mail). O conceito era prático, instantâneo e o fluxo de mensagens entre as pessoas de uma empresa aumentou exponencialmente. Qual o preço? A gradual perda dos períodos de atenção máxima dedicada ao que queremos fazer e tem valor para nós.

Que o email tenha revolucionado o modo de comunicar, não restam dúvidas. Mas que o seu efeito a longo prazo seria o da superficialidade dos conteúdos, o aumento da ansiedade, e a distracção constante, ninguém podia imaginar. Hoje, o trabalho de muitas pessoas é: responder a emails. Até mesmo daqueles cujo trabalho deveria ser ensinar ou investigar. A capacidade que os emails têm de prender a nossa atenção deve-se à ausência de fricção no meio de comunicação. É fácil, simples e imediato. Porque não? Mas uma atenção fragmentada pode ser o primeiro passo para uma vida stressada.

Parece impossível imaginar “um mundo sem email”, mas foi precisamente isso que Cal Newport, professor de computação da Universidade de Georgetown, fez com o seu último livro (ainda por traduzir em português). Na reflexão que faz recorda como a distracção de um email obriga o nosso cérebro a mudar de tarefa, e muito do cansaço que as pessoas sentem quando estão sempre a consultar e a responder aos emails provém desta constante troca do foco da nossa atenção.

Para se entender como é bom para a nossa saúde cerebral estar concentrado a fazer uma coisa de cada vez, houve um grupo de investigadores que fizeram uma experiência com um grupo de pessoas. A tarefa consistia em adicionarem 6 a cada número de uma sequência que lhes tinham dado. Depois, numa segunda tarefa, pediram que usassem a mesma sequência original e uma vez somavam 6 e ao número seguinte subtraíam 3, depois voltavam a somar 6, e diminuir 3, mudando a operação a cada número da sequência. O resultado foi demorarem mais tempo a completar a segunda tarefa. Assim, demonstraram o efeito que o email pode ter na nossa atenção: demoramos mais tempo a fazer o que deveríamos e cansamo-nos mais.

O que me deixa desconfortável foi aperceber-me de que as pessoas com as aplicações de email nos seus telemóvel estão, sistematicamente, sujeitas a serem capturadas na sua atenção. E ao email poderíamos juntar as mensagens SMS, WhatsApp, Slack, novos posts nas redes sociais, etc. E muitos pensam que desligar as notificações é suficiente, mas não. Pois, desligar as notificações não elimina a ansiedade de — «será que alguém me enviou alguma mensagem?» — ou as impede de levar a mão ao bolso, constantemente, por lhes parece que o telemóvel vibrou. Receio que esta incursão involuntária pelo nosso espaço de atenção comece a influenciar a nossa vida espiritual.

Os argumentos para que isso não seja verdade são sempre os mesmos: “eu sou imune a essas coisas.” Lamento, mas ninguém está imune de ver a sua atenção consumida e economizada (sem que nos demos conta disso). Precisamos de uma mudança radical nos nossos comportamentos e iniciar uma onda cultural que nos inspire a recuperar a nossa atenção. É aí que entra o ócio.

No brilhante livro “Só avança quem descansa”, o P. Vasco Pinto de Magalhães S.J. reflecte sobre o ócio e aprende-se muito. Por exemplo, o facto da palavra ócio ser uma tradução latina da palavra grega escolé, isto é, escola. Um «tempo de liberdade, de escuta e interiorização, de aprendizagem!» Como diz o P. Vasco, «o “ócio” era o espaço-tempo para fazer aquilo que vale a pena fazer e é gratuito. (…) diz-se que é fonte de vícios… Sim, se for não fazer nada e tempo mal vivido! Mas aquele “ócio” a que se referia Aristóteles, como tempo livre e de liberdade para meditar e conversar… “passeando pelos campos”, contemplando e reflectindo!»

Não é assim que devia ser para o cristão a vivência do tempo quaresmal? Tempo para pensar se os nossos comportamentos digitais não estarão a diminuir a experiência da liberdade de acolher a vontade de Deus em cada momento? Mas há um aspecto que penso de modo diferente do P. Vasco. Ele iguala “não fazer nada” a “tempo mal vivido”, mas “nada fazer” nos tempos de hoje pode ser um modo libertador que advém de pararmos, desacelerarmos e darmos tempo à lentidão que é a escala de tempo da montanha. Tempo de contemplação. Jesus expulsou os comerciantes que monetizavam a atenção das pessoas quando essas se deslocavam ao templo para rezar e estar com Deus. O que faria Jesus hoje? Talvez pegasse no nosso telemóvel e o deitasse fora.

O que podemos nós fazer para não chegarmos a esse ponto? Cabe a cada um. No meu caso, apaguei todas as aplicações de email do telemóvel.


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