Romaria à volta da ilha de S. Miguel

As romarias quaresmais são “uma das mais formosas tradições da Ilha de S. Miguel, porque nelas se revela a crença sadia, que, sendo o esteio de vigorosos antepassados, não deixa de perfumar a vida de modernas gerações, apesar da caudalosa torrente de impiedade querer avassalar todos os espíritos ” – sublinha no livro “A Alma do Povo Micaelense” o Pe. Ernesto Ferreira. Dando sempre a esquerda ao mar, caminhando durante oito dias, os romeiros micaelenses fazem a volta à ilha orando à Virgem e a Cristo. No caminho peregrino, este grupo de homens – vulgarmente denominado “Rancho Romeiro” – invocam a misericórdia divina e cantam louvores à Virgem Auxiliadora sob a direcção de um homem, a quem os companheiros dão o nome de mestre, mas que a todos trata por irmãos. “Caminha, irmão romeiro Vence mais esta vitória, P´ra que sejas herdeiro Do reino da eterna glória” Uma das quadras cantadas pelos ranchos dos romeiros que calcorreiam as estradas de alcatrão, os valados e as canadas de toda a ilha, em visita penitente às igrejas e ermidas do seu trajecto. Oito dias durará a peregrinação destes homens que transportam consigo a atitude de humildade, da doação ao próximo, da peregrinação por intenção da sorte dos outros. De onde vem esta tradição que bule tanto com as comunidades católicas de S. Miguel? Até no regulamento dos romeiros que a diocese de Angra editou há três anos refere-se que tem origem nas hecatombes naturais que devastaram Vila Franca do Campo – ao tempo a maior aglomeração populacional – a 22 de Outubro de 1522 e dias seguintes. António Mendes Arouca, um dos eremitas do Vale das Furnas com o nome de Fr. António da Assunção, deixou, entre outras obras, um manuscrito feito entre 1690 e 1702, intitulado “Peregrinação que costumam fazer os moradores da Ilha de S. Miguel visitando as Igrejas de Nossa Senhora”. Bordão de conto, rosário de lágrimas, lenço, cevadeira e xaile são utensílios fundamentais destes romeiros que tem como guia o mestre – um homem experimentado e conhecedor das veredas de S. Miguel – a meio do rancho o procurador das almas – durante a caminhada pede que se reze pelos defuntos. Na passagem pelas povoações, os homens suspendem o trabalho para ver passar o rancho e o rapazio acompanha-o por algum tempo. Com o aproximar da noite, os chefes de família vão buscar um ou mais romeiros para lhes dar hospedagem. Chegados ao local da pernoita, cumpre-se a visita à Igreja paroquial. A penitência de cada dia termina com o acto de acolhimento e a oração da noite. O grupo separa-se mas leva as regras consigo: “Um romeiro nunca pede, apenas recebe de bom grado e humildemente o que lhe é dado”. No dia seguinte, levantam-se muito cedo, reúnem-se e continuam a sua romagem. “Caminham na neblina, Misturados com a canseira; A providência divina É a maior companheira” Após nova paragem numa ermida isolada ou na igreja do povoado, os romeiros mantém a concentração que lhes dá o recolhimento da condição de peregrino. Quais as responsabilidades do mestre? Manter a ordem do rancho, providenciar as orações nas igrejas, oferecer e suplicar a Deus e à Virgem as preces de que vem incumbido. Ele é o primeiro que se ajoelha em cada paragem. O último a recolher-se para o descanso nocturno e o primeiro a erguer-se na madrugada seguinte. Ao mestre deve-se obediência como a um capitão de navio. Todas estas normas foram assimiladas porque, antes do início da caminhada, os romeiros têm momentos de preparação e retiros. Faça chuva ou faça sol, estes mica-elenses caminham… caminham… e conservam esta preciosa herança. Os ranchos não têm número preferencial de aderentes. Tudo depende do tamanho da localidade, da ocasião, e, quem sabe, da fé dos homens da povoação. A paupérrima terra de pescadores – Rabo de Peixe – costuma ser aquela com o maior “cardume” de romeiros. Porque será? Talvez as condições económicas e os sustos apanhados nas vagas alterosas do Atlântico, os apelem a esta “caminhada conversadora” com a Senhora Santa Maria dos Romeiros. “Cada romeiro é um livro e cada romaria um romance” sentencia “um daqueles para quem a ilha não tem segredos, tantas vezes foi já percorrida” – realça o livro “Romeiros – Peregrinos de hoje”.

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