«Avis 2020» é lançado esta sexta-feira e resulta dos dias de confinamento de Rodrigo Leão numa vila alentejana, que dá nome ao EP. Nos passeios que podia fazer pelos campos foi testemunhando as nuvens, o canto dos pássaros, as árvores e a natureza a dar lugar à primavera e, dentro de si, a tensão a dar lugar à esperança.
Em entrevista à Agência ECCLESIA, Rodrigo Leão afirma que os sons deste EP sairiam de qualquer forma, noutros trabalhos, mas neste, o som está mais próximo do original que captou e assim o pretendia apresentar.
A música que compõe poderia ser uma banda sonora para um caminho espiritual e diz que as perguntas chaves da vida estão, “de forma inconsciente”, presentes nas ideias que procura desenvolver e, de forma mais intensa, nos últimos trabalhos.
Entrevista conduzida por Lígia Silveira
Agência Ecclesia – O que significa Avis? É o seu refúgio, a sua casa, é também um contexto neste tempo, mas é também um abraço…
Rodrigo Leão – É o sítio especial para nós. Eu e a Ana Carolina casámos aqui há 20 anos nesta casa, no meio do campo, a dois quilómetros de Avis, no meio das oliveiras. É uma casa que nós, a pouco e pouco, fomos construindo: coisas que eram necessárias fazer que não conseguimos durante o ano e fomos fazendo ao longo do tempo como a vedação do terreno, plantar mais árvores, pintar, fazer os alpendres.
É um sítio onde acabamos por passar muito tempo, o tempo disponível que temos para vir para aqui, seja ao fim-de-semana ou durante as férias, onde passamos com muitos amigos, que convidamos, para passar dias connosco. E as pessoas mais chegadas da nossa família.
AE – Tem sido um contexto sonhado, construído a par?
RL – É quase a concretização de um sonho porque é um privilégio podermos ter este sítio no meio do campo com este sossego que existe aqui e não existe nos grandes centros urbanos.
Tem a barragem do Maranhão que é a dois ou três quilómetros e um sítio para onde tivemos a possibilidade de vir em março, quando começou a situação do Covid-19. Nunca tínhamos estado tanto tempo. Estamos cá há mais de quatro meses, raramente vamos a Lisboa, e quando vamos regressamos no próprio dia.
AE – Estar em Avis ajudou-o a lidar com o confinamento?
RL – Acho que sim: é um sítio muito calmo, que ajuda a pensar mais sobre tudo: as nossas relações, as nossas vidas e é um sítio onde, claro, muitas vezes tento trabalhar, procurar ideias com um sintetizador, temos também um piano vertical, tenho uma guitarra baixo e uma guitarra acústica… alguns instrumentos que me dão jeito ter por perto quando estou a procurar encontrar ideias.
AE – E como foi compor no confinamento? Foi uma necessidade, um processo de descoberta, foi o permitir lidar com esta situação, compondo?
RL – Acaba por ser uma necessidade que tenho mesmo em situações normais. Durante o primeiro mês, o facto de estarmos a viver tão intensamente tudo isto, não foi algo que me ajudasse ou que me permitisse encontrar ideias boas ou estar inspirado e mais focado.
As poucas vezes que me sentei para tentar fazer alguma coisa durante o primeiro mês não aconteceu praticamente nada. Mas a verdade é que ao fim de um mês e pouco, apanhámos a transição do inverno para a primavera, e comecei a fazer alguns filmes com o meu telemóvel, filmes curtos, das nuvens do céu, das árvores, do canto, das planícies, filmes de 50 segundos; e chegava a casa e tentava, muito espontaneamente e intuitivamente, encontrar uma ideia de uma música para essas filmagens.
E isso começou por fazer com que tivesse mais algum entusiasmo com essas pequenas ideias e assim surgiu este novo EP, que são nove faixas de pequenas músicas, de cerca de dois minutos, e se chama «Avis 2020».
Pensei que seria interessante poder registar essas músicas, que acabei por fazer quase sozinho aqui no Alentejo, mas fui dois dias a Lisboa para, num estúdio caseiro, juntamente com o João Eleutério e o Pedro Oliveira, grandes amigos de longa data e companheiros que me ajudam a produzir a concretizar as minhas ideias, e acabamos por misturar estas ideias em dois dias. E assim nasceu este trabalho.
AE – Que momentos têm o «Avis 2020»? A transição do inverno para a primavera, algumas faixas terão um tom mais de esperança outras mais tensas… como explicar estes momentos que compõem o EP?
RL – Estou a lembrar-me da primeira ideia: uma música com nuvens ao fim do dia e que acho que reflete aquilo que estávamos a viver, o que eu sentia, apesar de estarmos aqui com a família e dois amigos chegados e podermos fazer caminhadas e passear. É evidente que estávamos preocupados, como ainda hoje estamos preocupados.
Depois há algumas ideias onde já se nota alguma esperança, seja nas imagens onde já aparece mais luz, onde se nota que a primavera está a começar e isso está tudo muito presente nestes trechos. Acabaram por estar ligados, não só com as pessoas à minha volta, como com este sítio onde estamos.
AE – O que é que o «Avis 2020» reflete do percurso do Rodrigo Leão? Se olharmos para este trabalho, ele é fruto deste contexto ou vem na linha de composição do Rodrigo Leão?
RL – Vem na linha do que tenho vindo a fazer. Mas claro que está também marcado pelo facto de estarmos a viver este momento de confinamento. Diria que seriam temas que eu poderia ter feito há dois ou três anos mas que depois estariam durante uns meses a ser trabalhados. Aqui estão mais próximos da sua originalidade.
AE – E era importante mostrar essa originalidade?
RL – Sim, porque seria muito complicado irmos para estúdio com muitos músicos, com um quarteto de cordas, cantores… isto é muito semelhante às ideias que normalmente tento construir para outros discos. Por vezes essas ideias, algumas delas levam muitas voltas, arranjos diferentes ao longo de meses, não só com sugestões dos produtores que trabalham comigo, dos próprios músicos, dos arranjos que o Carlos Tony Gomes faz por vezes para as cordas, e tudo isso tornaria estas músicas diferentes.
Apesar de poderem ser as mesmas harmonias e melodias, mas a escolha de sons, arranjos, instrumentos, daria um som diferente deste. Era também importante manter o som o mais perto possível do original.
AE – Ouvi um poeta falar sobre a sua necessidade de escrever poesia, nem que fosse para a enterrar logo a seguir, sem mostrar a ninguém. Sente o mesmo? Compor é uma necessidade vital ou precisa dela para depois dialogar com o público?
RL – É uma necessidade que eu penso estar dentro de mim desde há muito tempo. Ao contrário de muitas pessoas que só gostam de mostrar as coisas quando estão acabadas, e têm dificuldade em mostrar o que fazem, eu mostro tudo às pessoas que estão próximas de mim, coisas que vão depois para o lixo e que eu penso «Como é possível ter perdido o tempo que perdi com uma ideia que, afinal não parece nada de especial».
São momentos com altos e baixos que fazem parte do processo de tentar descobrir ideias e concretizá-las.
AE – Este trabalho vai ser apresentado, fruto do contexto da pandemia, em locais mais pequenos e intimistas. Pergunto-lhe se o intimista, e o íntimo, lhe interessa?
RL – Nós temos formações diferentes, temos pelo menos três projetos neste momento: «O Método» resulta mais em salas intimistas, teatros e salas mais pequenas. O outro projeto, «Os Portugueses», são canções cantadas em português e muitos temas que compus para «Portugal, um retrato social», 2007, documentário do professor António Barreto. Há um projeto que se chama «O Mundo» e aí sim, tocamos em espaços maiores, porque é uma formação com mais músicos, com bateria e baixo, e é nesse espetáculo que tocamos canções de quase todos os meus trabalhos.
Este disco, «O Método», e as músicas deste novo EP «Avis 2020», são músicas mais intimistas que eu penso que resultam melhor em salas e teatros e vamos ter a oportunidade de apresentar dia 15 de agosto, no Casino Estoril, e vai ser o primeiro concerto em que vamos fazer um esforço muito grande para fazer um streeming com condições para as pessoas, que estão em casa, poderem assistir com um bom som, bom imagem e isso é um lado importante do meu trabalho.
AE – Pergunto-lhe isto porque a sua música acompanha um caminho espiritual das pessoas, quase uma banda sonora espiritual. Como reage a essa recepção do público?
RL – A minha música acaba por transmitir alguma paz, sossego. É uma música que faz pensar, que podemos ouvir em espaços, como dizia, mais fechados. Acredito que todos nós temos um lado espiritual de viver, de encarar a vida: porque é que existimos, para onde vamos quando morrermos, porque nascemos?
Tudo isto acaba por, de uma forma inconsciente, estar presente em muitas ideias que tento fazer.
AE – A sua música procura fazer perguntas, não encontrar respostas…
RL – Há quase uma espécie de filosofia que está muito presente nos meus trabalhos. Fazemos muitas perguntas para as quais não temos respostas e muitas dessas perguntas até fazem sentido precisamente porque não têm resposta e há algo de misterioso, de espiritual, muito mais intenso nestes últimos trabalhos.
AE –Não posso deixar de focar o trabalho de 2015, «O retiro». Li que era um trabalho que há muito estava consigo, no seu pensamento. Gostava de perceber porquê. Para quem é crente ou para quem procura, só a palavra em si, tem um significado grande.
RL – Foi um trabalho um pouco diferente dos meus trabalhos habituais. Era um disco com a participação da Orquestra e coro da Gulbenkian, e só isto já me deixava um pouco nervoso e tenso. Mas estive seis meses a compor, a procurar ideias, como costumo fazer para qualquer trabalho. Tivemos, nesse disco, a oportunidade de gravar na sala da Gulbenkian, que tem condições extraordinárias para som, um produtor alemão que veio com uma série de material e microfones para captar a orquestra e o coro e foi, no fundo, apesar de já ter trabalhado até 2015, com outras orquestras, como a Sinfonieta e ter feito alguns trabalhos, a maioria ao vivo, este foi talvez o primeiro disco pensado para orquestra e coro.
Era um disco mais elaborado, tinha arranjos feitos para orquestra pelo Carlos Tony Gomes, pelo Steve Bartek, porque, eu sozinho, não conseguiria fazer arranjos para orquestra. Eu dou as primeiras ideias para um violoncelo, violino ou viola, mas deixei essa parte para pessoas que eu admiro muito com quem gosto de trabalhar.
AE – Sente que o seu trabalho fica incompleto sem a ajuda de outros?
RL – Não sei se será a palavra «incompleto», fica diferente. É o caso do «Avis 2020» que não tem as participações habituais que costumo ter. A minha música tem uma simplicidade, mesmo com colaborações e que está, umas vezes mais presente do que outras.
É uma maneira de estar perante a música que gostava de manter, esta oportunidade de descobrir ideias. Eu não procuro a perfeição, tenho momentos que sou mais preguiçoso que outros, tenho de trabalhar mais, mas não há uma obsessão em procurar a perfeição, acho que não existe. Sei distinguir músicas que ficaram melhor conseguidas que outras, não só pelos arranjos, mas é algo com que vivo bem.
AE – No processo criativo, que lugar tem o silêncio? No ensaio, na procura, no perceber se resulta…
RL – O silêncio é muito importante. Eu trabalho mais durante a noite, então aqui no Alentejo há um silêncio fantástico. Para além das horas em que estou a trabalhar com o computador e o sintetizador em que vou gravando as minhas ideias, revejo o que eu fiz no dia anterior e vejo se está no bom caminho… tenho muitas dúvidas durante o processo, peço sempre ajuda mesmo quando estou no início, gosto de mostrar um bocadinho da ideia que estou a trabalhar para perceber a reação das pessoas.
AE – A música vai revelando a sua passagem pelo tempo? Vai cruzando os trabalhos com o seu crescimento pessoal?
RL – É impossível conseguir desligar aquilo que estamos a fazer em determinado momento da realidade de tudo que está à nossa volta. Se estamos mais tristes ou alegres, as viagens que fazemos muitas vezes são também uma fonte de inspiração grande para fazer música. Mas sempre de forma intuitiva. Não creio que as músicas que tento fazer sejam demasiadamente pensadas, surgem naturalmente e vão ressurgindo.
AE – E é dessa forma que quer entregar às pessoas que acompanham o seu trabalho.
RL – Claro. As pessoas acabam por perceber a minha maneira de trabalhar e a música que eu tento fazer e dar a conhecer às pessoas. Grande parte das pessoas sabe que eu sou um autodidata, aprendi a tocar com os amigos, não tenho em mente fazer coisas que não sei fazer.
AE – Mas há fez tanto, bandas sonoras…
RL – Tenho tido muita sorte. Poder cruzar estilos musicais muito diferentes que eu comecei a ouvir desde a minha infância, adolescência, em casa dos meus pais, desde a música clássica, à música pop britânica, tango, música brasileira. Foi importante para o meu percurso, não estar preso só a um estilo musical mas poder abordar vários estilos musicais que estão muito presentes na minha música.
AE – Em «O Método» descobrimos que gosta de desenhar. É um repouso, uma procura interior… como surge o desenho?
RL – Ao longo dos últimos três, quatro anos, havia momentos em que estava a tentar fazer música e não saia nada. Comecei a pegar numas canetas e a fazer desenhos abstratos, quase por brincadeira. Tirava uma hora e estava entretido a desenhar. Foi acontecendo com mais frequência.
«O Método» acabou por ficar muito marcado por alguns desenhos que fui fazendo aos longos dos últimos anos. «O Método», ao contrário de outros trabalhos, terá sido o disco que demorou mais tempo a fazer. Eu tinha muitas ideias reunidas, mais de 50 ideias, e acabaram por ficar 11 ou 12, ou 13. Houve muita procura não só de sons, mas de reportório: o que faz sentido ficar ou sair.
Nestes últimos anos houve desenhos que estavam muito ligados a estes momentos em que procurei encontrar músicas para este trabalho.
AE – Quando preparava esta nossa conversa deparei-me com uma citação do compositor Ennio Morricone, que faleceu recentemente, e ele dizia: «A música certamente está próxima de Deus. Ao mesmo tempo a música está projetada na alma e no cérebro do homem, porque o ajuda a meditar». Consegue perceber isso na sua música?
RL –Na música que tento fazer há, sem dúvida, um espaço para meditar e para pensarmos concerteza, na existência de um Deus, provavelmente de maneiras diferentes, mas claro que a música pode servir como ponte, penso eu, para um pensamento mais abstrato, mais espiritual.
O Ennio Morricone era um grande compositor.
AE – O que espera que este tempo de confinamento possa provocar em nós, enquanto sociedade que olha para a cultura, e enquanto homens que se relacionam?
RL – Já está a provocar e vai provocar mais ainda. Gostava de acreditar que no meio de tudo isto possa acontecer alguma coisa de boa às pessoas, na maneira de olharmos para o mundo, de olharmos para as outras pessoas.
Vivemos momentos de uma incerteza tão grande que não nos deixa fazer planos.
Espero que as pessoas possam, acima de tudo, ajudar-se umas às outras, serem mais humanas, ter mais atenção com tudo o que está à nossa volta, com o clima, com tudo.