«Respeitar a dignidade humana contra uma instrumentalização pura»

No primeiro dia das XVII Jornadas Teológicas de Braga, a decorrer na Faculdade de Teologia do Centro Regional da Universidade Católica Portuguesa, Maria do Céu Patrão Neves alertou para o facto da técnica aplicada às ciências ter de se sujeitar ao escrutínio dos valores éticos. «A tecnologia, como acção exterior ao sujeito, assume- se como um “saber fazer” que tem tudo a ver com a nossa maneira de ser», lembrou aquela docente da Universidade dos Açores ao salientar a impossibilidade das ciências da vida serem «axiologicamente neutras». Num diálogo descontraído, criando momentos de humor com o auditório, a conferencista estabeleceu uma relação histórica entre ciência e técnica, mostrando os “horizontes da biomedicina no século XXI”, tema da conferência de anteontem. Com a descoberta do ADN, «assistimos ao irromper das tecnociências». A partir daí, explicou a docente universitária, toda a capacidade da técnica científica passou a ter uma «dimensão prática», aplicável às diferentes formas do natural, incluindo o Homem. Maria do Céu Neves lembrou as técnicas reprodutivas existentes (inseminação artificial, fertilização in vitro, entre outras), explicando os desenvolvimentos aplicados à engenharia genética e os actuais sistemas de suporte vital, estes últimos intervindo no processo natural da morte. «O natural converte-se em artificial» «Todos estes avanços são prova de que a acção técnica é exterior ao próprio sujeito, mas há que lembrar que a tecnologia é exercício do poder humano». Enquanto tal, quanto mais poder existir, mais deveres devem surgir, uma vez que sem este pensamento, «o natural ao ser aperfeiçoado acaba por passar para a esfera do puro artificial», alertou a conferencista que falou na abertura das Jornadas Teológicas de Braga/ /2005, organizadas pela Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia de Braga (AEFTB) e “Cenáculo” (Revista dos Alunos da mesma academia). Segundo Maria do Céu Patrão Neves, que faz parte da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida, há o perigo do progresso tecnológico «ser desvirtuado por um tecnicismo artificial» que substitui e tende a esquecer o humano. Esclarecendo os vários níveis em que as biotecnologias intervêm no campo da vida e perante avanços como a procriação medicamente assistida (PMI), a injecção intracitoplasmática (ICSI) ou a clonagem terapêutica, há o imperativo de «respeitar a dignidade humana contra uma instrumentalização pura». Neste sentido, a conferencista interpelou os presentes a reflectirem sobre os efeitos «de uma total objectivação» da pessoa humana, face às possibilidades científicas actuais. «Onde é que paramos quando se fala na selecção de genes? Como sabemos e classificamos os bons genes dos maus, necessários para a selecção?», inquiriu a oradora. «A ética não trava a ciência» Neste sentido, Maria do Céu Patrão Neves clarificou que «a ética não trava a ciência», já que é na intersecção das duas que a «técnica progride verdadeiramente». Finalizando a conferência com uma interrogação acerca do “dever” que tem de regular o “poder” sobre a vida, a convidada da primeira sessão das jornadas frisou que o «dever da ética não elimina o poder da ciência», uma vez que é a única condição para conciliar o humanismo com o tecnicismo. Hoje, novamente pelas 21h15, tem lugar a última conferência das XVII Jornadas Teológicas de Braga, apresentada por Alfonso Novo Cid-Fuentes, docente do Instituto Compostelano, que vai falar sobre “o Homem no mundo e o sonho da sua imortalidade”. Portugal sem lei para regular as investigações actuais Segundo Maria do Céu Patrão Neves, «em Portugal não existe lei nenhuma» para regular as últimas investigações e avanços no campo biológico. Excepto a proibição da clonagem reprodutiva, pela Convenção de Oviedo e assinada pelo nosso país, «todas estas possíveis combinações biológicas carecem de uma lei concreta». Este alerta foi lançado na altura em que a coordenadora do pólo açoriano do Centro de Estudos de Bioética explicava aos participantes na abertura das Jornadas Teológicas de Braga o último avanço na clonagem terapêutica, tornado público no passado dia 20. Este tipo de clonagem visa aproveitar as chamadas células estaminais para a sua transformação em tecidos e órgãos, necessários para uma recuperação dos doentes. O processo de clonagem por transferência nuclear de células somáticas foi realizado por dois cientistas sul-coreanos, que conseguiram criar uma linha celular por cada 17 tentativas, algo inédito até então. Neste momento, o único processo que falta para uma eficaz aplicação destas células em doentes é perceber o mecanismo de diferenciação das mesmas, ou seja, o que faz com que as células se transformem nos tecidos que se deseja.

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