Redemptor hominis

Primeira encíclica do Papa faz hoje 25 anos Veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos: Saúde e Bênção Apostólica! I. HERANÇA 1. No final do segundo Milénio O Redentor do homem, Jesus Cristo, é o centro do cosmos e da história. Para Ele se dirigem o meu pensamento e o meu coração nesta hora solene da história, que a Igreja e a inteira família da humanidade contemporânea estão a viver. Efectivamente, este tempo, no qual, depois do predilecto Predecessor João Paulo I, por um seu misterioso desígnio Deus me confiou o serviço universal ligado com a Cátedra de São Pedro em Roma, está muito próximo já do ano Dois Mil. É difícil dizer, neste momento, o que aquele ano virá a marcar no quadrante da história humana, e como é que ele virá a ser para cada um dos povos, nações, países e continentes, muito embora se tente, já desde agora, prever alguns eventos. Para a Igreja, para o Povo de Deus que se estendeu — se bem que de maneira desigual — até aos mais longínquos confins da terra, esse ano virá a ser o ano de um grande Jubileu. Estamos já, portanto, a aproximar-nos de tal data que — respeitando embora todas as correcções devidas à exactidão cronológica — nos recordará e renovará em nós de uma maneira particular a consciência da verdade-chave da fé, expressa por São João nos inícios do seu Evangelho: « O Verbo fez-se carne e veio habitar entre nós »; e numa outra passagem « Deus, de facto, amou de tal modo o mundo, que lhe deu o Seu filho unigénito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna ». Estamos também nós, de alguma maneira, no tempo de um novo Advento, que é tempo de expectativa. « Deus, depois de ter falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitos modos, pelos Profetas, falou-nos nestes últimos tempos pelo Filho … », por meio do Filho-Verbo, que se fez homem e nasceu da Virgem Maria. Com este acto redentor a história do homem atingiu, no desígnio de amor de Deus, o seu vértice. Deus entrou na história da humanidade e, enquanto homem, tornou-se sujeito à mesma, um dos milhares de milhões e, ao mesmo tempo, Único! Deus, através da Encarnação, deu à vida humana aquela dimensão, que intentava dar ao homem já desde o seu primeiro início e deu-lha de maneira definitiva — daquele modo a Ele somente peculiar, segundo o seu eterno amor e a sua misericórdia, com toda a divina liberdade — e, simultaneamente, com aquela munificência, que, perante o pecado original e toda a história dos pecados da humanidade e perante os erros da inteligência, da vontade e do coração humano, nos dá azo a repetir com assombro as palavras da Sagrada Liturgia: « Ó ditosa culpa, que tal e tão grande Redentor mereceu ter ». 2. Primeiras palavras do novo Pontificado A Cristo Redentor elevei os meus sentimentos e pensamentos a 16 de Outubro do ano passado, quando, após a eleição canónica, me foi feita a pergunta: « Aceitais? » E eu respondi então: « Com obediência de fé em Cristo, meu Senhor, e confiando na Mãe de Cristo e da Igreja, não obstante as muitas dificuldades, eu aceito ». Quero hoje dar a conhecer publicamente aquela minha resposta a todos, sem excepção alguma, tornando assim manifesto que está ligado com a verdade primeira e fundamental da Encarnação o ministério que, com a aceitação da eleição para Bispo de Roma e para Sucessor do Apóstolo Pedro, se tornou meu específico dever na sua mesma Cátedra. Escolhi os mesmos nomes que havia escolhido o meu amadíssimo Predecessor João Paulo I. Efectivamente, quando a 26 de Agosto de 1978 ele declarou ao Sacro Colégio (dos Cardeais) que queria ser chamado João Paulo — um binómio deste género não tinha antecedentes na história do Papado — já então reconheci nisso um eloquente bom auspício da graça sobre o novo Pontificado. E dado que esse Pontificado durou apenas trinta e três dias, cabe-me a mim não somente continuá-lo, mas, de certo modo, retomá-lo desse mesmo ponto de partida. Isto precisamente é confirmado pela escolha, feita por mim, desses dois nomes. E ao escolhê-los assim, em seguida ao exemplo do meu venerável Predecessor, desejei como ele também eu exprimir o meu amor pela singular herança deixada à Igreja pelos Sumos Pontífices João XXIII e Paulo VI; e, ao mesmo tempo, manifestar a minha disponibilidade pessoal para a desenvolver com a ajuda de Deus. Através destes dois nomes e dos dois pontificados, quero vincular-me a toda a tradição desta Sé Apostólica, com todos os Predecessores no espaço de tempo deste século vinte e dos séculos precedentes, ligando-me gradualmente, segundo as diversas épocas até às mais remotas, àquela linha da missão e do ministério que confere à Sé de Pedro um lugar absolutamente particular na Igreja. João XXIII e Paulo VI constituem uma etapa, à qual desejo referir-me directamente, como a um limiar do qual é minha intenção, de algum modo juntamente com João Paulo I, prosseguir no sentido do futuro, deixando-me guiar por confiança ilimitada e pela obediência ao Espírito, que Cristo prometeu e enviou à sua Igreja. Ele, efectivamente dizia aos seus Apóstolos, na véspera da sua Paixão: « É melhor para vós que eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei ». « Quando vier o Consolador, que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai, o Espírito da verdade que do Pai procede, ele dará testemunho de Mim. E vós também dareis testemunho de Mim, porque estais comigo desde o princípio ». «Quando, porém, Ele vier, o Espírito da verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará por Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas vindouras ». 3. Confiança no Espírito da Verdade e do Amor É, pois, confiando plenamente no Espírito da verdade, que eu entro na posse da rica herança dos pontificados recentes. Esta herança acha-se fortemente radicada na consciência da Igreja de maneira absolutamente nova, nunca dantes conhecida, graças ao II Concílio do Vaticano, convocado e inaugurado por João XXIII e, em seguida, concluído felizmente e actuado com perseverança por Paulo VI, cuja actividade eu próprio pude observar de perto. Fiquei sempre maravilhado com a sua profunda sapiência e com a sua coragem, e igualmente com a sua constância e paciência no difícil período posconciliar do seu Pontificado. Como timoneiro da Igreja, barca de Pedro, ele sabia conservar uma tranquilidade e um equilíbrio providenciais mesmo nos momentos mais críticos, quando parecia que ela estava a ser abalada por dentro, mantendo sempre uma inquebrantável esperança na sua compacidade. Aquilo, de facto, que o Espírito disse à Igreja mediante o Concílio do nosso tempo, e aquilo que esta Igreja diz a todas as Igrejas não pode — apesar das inquietudes momentâneas — servir para outra coisa senão para uma compacidade mais maturada ainda de todo o Povo de Deus, bem consciente da sua missão salvífica. Desta consciência contemporânea da Igreja precisamente, Paulo VI fez o primeiro tema da sua fundamental Encíclica, que se inicia com as palavras Ecclesiam Suam; e seja-me permitido fazer referência e pôr-me em conexão, antes de mais nada, com esta Encíclica, neste primeiro e, por assim dizer, inaugural documento do presente Pontificado. Com as luzes e com o apoio do Espírito Santo a Igreja tem uma consciência cada vez mais aprofundada quer pelo que se refere ao seu mistério divino, quer pelo que se refere à sua missão humana, quer mesmo, finalmente, quanto a todas as suas fraquezas humanas: esta consciência, precisamente, é e deve permanecer a primeira fonte do amor por esta Igreja, assim como o amor, da sua parte, contribui para consolidar e para aprofundar tal consciência. Paulo VI deixou-nos o testemunho de uma consciência da Igreja assim, extremamente perspicaz. Através das multíplices e não raro sofridas componentes do seu Pontificado, ele ensinou-nos o amor destemido pela Igreja, a qual — como afirma o Concílio — é « sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ». 4. Referência à primeira Encíclica de Paulo VI Por tal razão, exactamente, a consciência da Igreja há-de andar unida com uma abertura universal, a fim de que todos possam nela encontrar « as imperscrutáveis riquezas de Cristo », das quais fala o Apóstolo das gentes. Uma tal abertura, organicamente conjunta com a consciência da própria natureza, com a certeza da própria verdade, da qual o mesmo Cristo disse « não é minha, mas do Pai que me enviou », determina o dinamismo apostólico, que o mesmo é dizer missionário, da Igreja, professando e proclamando integralmente toda a verdade transmitida por Cristo. E simultaneamente ela, a Igreja, deve conduzir aquele diálogo que Paulo VI na sua Encíclica Ecclesiam Suam chamou « diálogo da salvação », diferenciando com precisão cada um dos círculos no âmbito dos quais ele deveria ser conduzido. Quando assim me refiro hoje a este documento programático do Pontificado de Paulo VI, não cesso de dar graças a Deus, pelo facto de este meu grande Predecessor e ao mesmo tempo verdadeiro pai ter sabido — não obstante as diversas fraquezas internas, por que foi afectada a Igreja no período posconciliar — patentear « ad extra », « para o exterior », o seu autêntico rosto. De tal maneira, também grande parte da família humana, nas diversas esferas da sua multiforme existência, se tornou — na minha opinião — mais consciente do facto de lhe ser necessária verdadeiramente a Igreja de Cristo, a sua missão e o seu serviço. E esta consciência algumas vezes demonstrou-se mais forte do que as diversas atitudes críticas, que atacavam « ab intra », vindas « de dentro », a mesma Igreja, as suas instituições e estruturas, e os homens da Igreja e as suas actividades. Um tal crítica crescente teve sem dúvida diversas causas e, por outro lado, estamos certos de que ela não foi sempre destituída de um sincero amor à Igreja. Manifestou-se nela, indubitavelmente, entre outras coisas, a tendência para superar o chamado triunfalismo, de que se discutia com frequência durante o Concílio. No entanto, se é uma coisa acertada que a Igreja, seguindo o exemplo do seu Mestre que era « humilde de coração », esteja bem assente também ela na humildade, que possua o sentido crítico a respeito de tudo aquilo que constitui o seu carácter e a sua actividade humana e que seja sempre muito exigente para consigo própria, é óbvio igualmente que também a crítica deve ter os seus justos limites. Caso contrário, ela deixa de ser construtiva, não revela a verdade, o amor e a gratidão pela graça, da qual principal e plenamente nos tornamos participantes exactamente na Igreja e mediante a Igreja. Além disto, o espírito crítico não exprime a atitude de serviço, mas antes a vontade de orientar a opinião de outrem segundo a própria opinião, algumas vezes divulgada de maneira assaz imprudente. Deve-se gratidão a Paulo VI ainda, porque, respeitando toda e qualquer parcela de verdade contida nas várias opiniões humanas, ele conservou ao mesmo tempo o equilibrio providencial do timoneiro da Barca. A Igreja que — através de João Paulo I — quase imediatamente depois dele me foi confiada, não se acha certamente isenta de dificuldades e de tensões internas. Entretanto, ela encontra-se interiormente mais premunida contra os excessos do autocriticismo; poder-se-ia dizer, talvez, que ela é mais crítica diante das diversas críticas imprudentes, e está mais resistente no que respeita às várias « novidades », mais maturada no espírito de discernimento e mais idónea para tirar do seu perene tesouro « coisas novas e coisas velhas », mais centrada no próprio mistério e, graças a tudo isto, mais disponível para a missão da salvação de todos: « Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade ». 5. Colegialidade e apostolado Esta Igreja — contra todas as aparências — está mais unida na comunhão de serviço e na consciência do apostolado. Tal união nasce daquele princípio de colegialidade, recordado pelo II Concílio do Vaticano, que o próprio Cristo enxertou no Colégio Apostólico dos Doze, com Pedro na chefia, e que renova continuamente no Colégio dos Bispos, o qual cresce cada vez mais sobre toda a terra, permanecendo unido com o Sucessor de São Pedro e sob a sua orientação. O Concílio não se limitou a recordar este princípio de colegialidade dos Bispos, mas vivificou-o imensamente, além do mais, auspiciando a instituição de um órgão permanente, que Paulo VI estabeleceu constituindo o Sínodo dos Bispos, cuja actividade não somente deu uma nova dimensão ao seu Pontificado, mas, em seguida, se reflectiu claramente logo desde os primeiros dias no Pontificado de João Paulo I e no do seu indigno Sucessor. O princípio de colegialidade demonstrou-se particularmente actual no difícil período posconciliar, quando a comum e unânime posição do Colégio dos Bispos — o qual manifestou a sua união ao Sucessor de Pedro sobretudo através do Sínodo — contribuía para dissipar as dúvidas e indicava ao mesmo tempo as justas vias da renovação da Igreja, na sua dimensão universal. Do Sínodo, efectivamente, se originou, entre outras coisas, aquele impulso essencial para a evangelização que teve a sua expressão na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, acolhida com tanta alegria como programa da renovação de carácter apostólico e conjuntamente pastoral. A mesma linha foi seguida também nos trabalhos da última sessão ordinária do Sínodo dos Bispos, aquela que se realizou cerca de um ano antes da morte do Sumo Pontífice Paulo VI, a qual foi dedicada, como é sabido, à Catequese. Os resultados daqueles trabalhos requerem ainda uma sistematização e uma enunciação por parte da Sé Apostólica. E uma vez que estamos a tratar do manifesto desenvolvimento das formas em que se exprime a Colegialidade episcopal, devemos pelo menos recordar o processo de consolidação das Conferências Episcopais Nacionais em toda a Igreja e de outras estruturas colegiais de carácter internacional ou continental. Referindo-nos, depois, à tradição secular da Igreja, convém salientar a actividade dos diversos Sínodos locais. Foi de facto ideia do Concílio, coerentemente actuada por Paulo VI, que as estruturas deste género, de há séculos comprovadas pela Igreja, bem como as outras formas de colaboração colegial dos Bispos — por exemplo a que se centra nas metrópoles, para não falar já de cada uma das dioceses singularmente tomadas — pulsassem em plena consciência da própria identidade e conjuntamente da própria originalidade, na unidade universal da Igreja. Um idêntico espírito de colaboração e de corresponsabilidade se está a difundir também entre os sacerdotes, o que é confirmado pelos numerosos Conselhos Presbiterais que surgiram após o Concílio. O mesmo espírito se difundiu também entre os leigos, não apenas confirmando as organizações de apostolado laical já existentes, mas criando outras novas, que não raro se apresentam com um perfil diverso e uma dinâmica excepcional. Além disto, os leigos, conscientes da sua responsabilidade pela Igreja, aplicaram-se de boa vontade na colaboração com os Pastores e com os representantes dos Institutos de vida consagrada, no âmbito dos Sínodos diocesanos, e dos Conselhos pastorais nas paróquias e nas dioceses. Para mim importa ter em mente tudo isto nos inícios do meu Pontificado, para agradecer a Deus, para exprimir um vivo encorajamento a todos os Irmãos e Irmãs e, além disto, para recordar com sentida gratidão a obra do II Concílio do Vaticano e os meus grandes Predecessores, que deram início a esta nova « vaga » a animar a vida da Igreja, movimento muito mais forte do que os sintomas de dúvida, de abalo e de crise. 6. Caminho para a união dos cristãos E que dizer de todas aquelas iniciativas que se originaram da nova orientação ecuménica? O inesquecível Papa João XXIII, com clareza evangélica, pôs e enquadrou o problema da união dos cristãos como simples consequência da vontade do próprio Jesus Cristo, nosso Mestre, afirmada por mais de uma vez e expressa, de modo particular, durante a oração no Cenáculo, na véspera da sua morte: « Rogo … Pai … que todos sejam uma só coisa ». E o II Concílio do Vaticano respondeu a esta exigência de forma concisa com o Decreto sobre o Ecumenismo. O Papa Paulo VI, por sua vez, valendo-se da colaboração do Secretariado para a União dos Cristãos, começou a dar os primeiros difíceis passos na caminhada para o conseguimento de uma tal união. Já teríamos andado muito nesta caminhada? Sem querer dar uma resposta pormenorizada, podemos dizer que fizemos verdadeiros e importantes progressos. E uma coisa é certa: temos trabalhado com perseverança e coerência; e conjuntamente connosco têm vindo a aplicar-se também os representantes de outras Igrejas e de outras Comunidades cristãs, pelo que lhes estamos sinceramente obrigados. Depois, é certo também que na presente situação histórica da cristiandade e do mundo, não se apresenta outra possibilidade para se cumprir a missão universal da Igreja pelo que respeita aos problemas ecuménicos, senão esta: procurar lealmente, com perseverança, com humildade e também com coragem as vias de aproximação e de união daquele modo que nos deixou o exemplo pessoal o Papa Paulo VI. Devemos buscar a união, portanto, sem nos deixarmos vencer pelo desânimo perante as diculdades que se possam apresentar ou acumular ao longo de tal caminho; caso contrário, não seríamos fiéis à palavra de Cristo, não executaríamos o Seu testamento. E será lícito correr um tal risco? Há pessoas que, encontrando-se diante das dificuldades, ou julgando negativos os resultados dos trabalhos iniciais no campo ecuménico, teriam tido vontade de voltar atrás. Há mesmo alguns que exprimem a opinião de que estes esforços são nocivos para a causa de Evangelho e levam a uma ulterior ruptura na Igreja, provocam a confusão de idéias nas questões da fé e da moral e vão desembocar a um específico indiferentismo. Talvez seja um bem que os porta-voz de tais opiniões exprimam os seus receios; no entanto, também pelo que se refere a este ponto, é necessário manter-se dentro dos devidos limites. É claro que esta nova fase da vida da Igreja exige de nós uma fé particularmente consciente, aprofundada e responsável. A verdadeira actividade ecuménica comporta abertura, aproximação, disponibilidade para o diálogo e busca em comum da verdade no pleno sentido evangélico e cristão; mas tal actividade de maneira nenhuma significa nem pode significar renunciar ou causar dano de qualquer modo aos tesouros da verdade divina, constantemente confessada e ensinada pela Igreja. A todos aqueles que, por qualquer motivo, quereriam dissuadir a Igreja de buscar a unidade universal dos cristãos, é necessário repetir ainda uma vez: Ser-nos-á lícito deixar de o fazer? Poderemos nós — não obstante toda a fraqueza humana, todas as deficiências acumuladas nos séculos passados — não ter confiança na graça de Nosso Senhor, tal como ela se manifestou nos últimos tempos, mediante a palavra do Espírito Santo, que ouvimos durante o Concílio? Se procedessemos assim, negaríamos a verdade que diz respeito a nós mesmos e que o Apóstolo expressou de maneira tão eloquente: « Pela graça de Deus sou aquilo que sou, e a graça que Ele me conferiu não foi estéril em mim ». Se bem que de um modo diverso e com as devidas diferenças, importa aplicar isto que acabámos de dizer agora à actividade que intenta a aproximação com os representantes das religiões não-cristãs e que se exprime também ela através do diálogo, dos contactos, da oração em comum e da busca dos tesouros da espiritualidade humana, os quais, como bem sabemos, não faltam também aos membros destas religiões. Não acontece, porventura, algumas vezes, que a crença firme dos sequazes das religiões não-cristãs — crença que é efeito também ela do Espírito da verdade operante para além das fronteiras visíveis do Corpo Místico — deixa confundidos os cristãos, não raro tão dispostos, por sua vez, a duvidar quanto às verdades reveladas por Deus e anunciadas pela Igreja, e tão propensos ao relaxamento dos princípios da moral e a abrir o caminho ao permissivismo ético? É nobre o estar-se predisposto para compreender cada um dos homens, para analisar todos os sistemas e para dar razão àquilo que é justo; isso, porém, não significa absolutamente perder a certeza da própria fé ou então enfraquecer os princípios da moral, cuja falta bem depressa se fará ressentir na vida de inteiras sociedades, causando aí, além do mais, deploráveis consequências. II. O MISTÉRIO DA REDENÇÃO 7. No Mistério de Cristo Entretanto, se as vias a seguir, para as quais o Concílio do nosso século orientou a Igreja, vias que nos indicou na sua primeira Encíclica o saudoso Papa Paulo VI, permanecerão de modo perduradoiro exactamente as vias que nós todos devemos seguir, ao mesmo tempo nesta nova fase podemos justamente interrogar-nos: Como? De que maneira será conveniente prosseguir? O que será necessário fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o já iminente fim do segundo Milénio, nos aproxime d’Aquele que a Sagrada Escritura chama « Pai perpétuo », Pater futuri saeculi? Esta é a pergunta fundamental que o novo Sumo Pontífice tem de pôr-se, desde o momento em que aceitou, em espírito de obediência de fé, o chamamento em conformidade com a ordem mais de uma vez dirigida a Pedro: « Apascenta os meus cordeiros »; o que quer dizer: « Sê pastor do meu rebanho »; e depois: « … e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos ». É precisamente aqui neste ponto, caríssimos Irmãos, Filhos e Filhas, que se impõe uma resposta fundamental e essencial, a saber: a única orientação do espírito, a única direcção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direcção de Cristo, Redentor do homem; na direcção de Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele, Filho de Deus, está a salvação, renovando a afirmação de Pedro: « Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens as palavras de vida eterna ». Através da consciência da Igreja, tão desenvolvida pelo Concílio, através de todos os graus desta consciência, através de todos os campos de actividade onde a Igreja se afirma presente, se encontra e se consolida, devemos tender constantemente para Aquele « que é a Cabeça », para « Aquele de quem tudo provém e nós somos criados para Ele », para Aquele que é, ao mesmo tempo, « o caminho e a verdade » e « a ressurreição e a vida », para Aquele ao ver o Qual vemos o Pai, para Aquele, enfim, que devia ir, deixando-nos — entende-se aqui a alusão à sua morte na Cruz e depois à sua Ascensão ao Céu — para que o Consolador viesse a nós e continue a vir constantemente como o Espírito da verdade. N’Ele estão « todos os tesouros da sabedoria e da ciência » e a Igreja é o seu Corpo. A Igreja « em Cristo é como que um sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »; e disto é Ele a fonte! Ele mesmo! Ele o Redentor! A Igreja não cessa de ouvir as suas palavras, continuamente as relê e reconstrói com a máxima devoção todos os pormenores da sua vida. Estas palavras são escutadas também pelos não cristãos. A vida de Cristo fala ao mesmo tempo também a muitos homens que ainda não se acham em condições de repetir com Pedro: « Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo ». Ele, Filho de Deus vivo, fala aos homens também como Homem: é a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua morte na Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do seu sofrimento e do seu abandono. A Igreja não cessa nunca de reviver a sua morte na Cruz e a sua Ressurreição, que constituem o conteúdo da vida quotidiana da mesma Igreja. De facto, é por mandato do próprio Cristo, seu Mestre, que a Igreja celebra incessantemente a Eucaristia, encontrando nela « a fonte da vida e da santidade », o sinal eficaz da graça e da reconciliação com Deus e o penhor da vida eterna. A Igreja vive o seu mistério e nele vai haurir sem jamais se cansar, e busca continuamente as vias para tornar este mistério do seu Mestre e Senhor próximo do género humano: dos povos, das nações, das gerações que se sucedem e de cada um dos homens em particular, como se repetisse sempre, seguindo o exemplo do Apóstolo: « Tomei a resolução de não saber, entre vós, outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado ». A Igreja permanece na esfera do mistério da Redenção, que se tornou precisamente o princípio fundamental da sua vida e da sua missão. 8. Redenção: renovada criação Redentor do mundo! N’Ele se revelou de um modo novo, de maneira admirável, aquela verdade fundamental respeitante à criação que o Livro do Génesis atesta quando repete mais de uma vez: Deus viu que as coisas eram boas. O bem tem a sua nascente na Sapiência e no Amor. Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem – aquele mundo que, entrando nele o pecado, foi submetido à caducidade – readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, « Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito ». Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado. Não nos convencem, porventura, a nós homens do século vinte, as palavras do Apóstolo das gentes, pronunciadas com uma arrebatadora eloquência, acerca da « criação inteira que geme e sofre, em conjunto, as dores do parto, até ao presente », e « atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus », acerca da criação que « foi submetida à caducidade »? O imenso progresso nunca dantes conhecido, que se verificou particularmente no decorrer do nosso século, no campo do domínio sobre o mundo por parte do homem, não revela acaso ele próprio e ainda por cima em grau nunca dantes conhecido, aquela multiforme submissão « à caducidade »? Basta recordar aqui certos fenómenos, como por exemplo a ameaça do inquinamento do ambiente natural nos locais de rápida industrialização, ou então os conflitos armados que rebentam e se repetem continuamente, ou ainda as perspectivas de autodestruição mediante o uso das armas atómicas, das armas com hidrogénio e com os neutrões e outras semelhantes e a falta de respeito pela vida dos não-nascidos. O mundo da época nova o mundo dos vôos cósmicos, o mundo das conquistas científicas e técnicas, nunca alcançadas antes, não será ao mesmo tempo o mundo que « geme e sofre » e « atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus »? O II Concílio do Vaticano, na sua penetrante análise do « mundo contemporâneo », chegava aquele ponto que é o mais importante do mundo visível, o homem, descendo — como Cristo — até ao profundo das consciências humanas, tocando mesmo o mistério interior do homem, que na linguagem bíblica (e também não bíblica) se exprime com a palavra « coração ». Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou no seu « coração ». Justamente, portanto, o mesmo II Concílio do Vaticano ensina: « Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, de facto, o primeiro homem, era figura do futuro (Rom 5, 14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime ». E depois, ainda: « Imagem de Deus invisível (Col 1, 15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que n’Ele a natureza humana foi assumida, sem ter sido destruída, por isso mesmo também em nosso benefício ela foi elevada a uma dignidade sublime. Porque, pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma vontade de homem e amou com um coração de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado ». Ele, o Redentor do homem. 9. Dimensão divina do mistério da Redenção Ao reflectirmos novamente sobre este texto admirável do Magistério conciliar, não esqueçamos, nem sequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliação junto do Pai. Ele precisamente e só Ele satisfez ao eterno amor do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao fazê-lo « pouco inferior aos anjos », enquanto criado « à imagem e à semelhança de Deus »; e, igualmente satisfez àquela paternidade de Deus e àquele amor, de um certo modo rejeitado pelo homem, com a ruptura da primeira Aliança e das alianças posteriores que Deus « repetidas vezes ofereceu aos homens ». A redenção do mundo — aquele tremendo mistério do amor em que a criação foi renovada – é, na sua raiz mais profunda, a plenitude da justiça num Coração humano: no Coração do Filho Primogénito, a fim de que ela possa tornar-se justiça dos corações de muitos homens, os quais, precisamente no Filho Primogénito, foram predestinados desde toda a eternidade para se tornarem filhos de Deus e chamados para a graça, chamados para o amor. A cruz no Calvário, mediante a qual Jesus Cristo — Homem, Filho de Maria Virgem, filho putativo de José de Nazaré — « deixa » este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o Qual por Ele (Cristo) de novo se aproxima da humanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o três vezes santo « Espírito da verdade ». Com esta revelação do Pai e efusão do Espírito Santo, que imprimem um sigilo indelével no mistério da Redenção, se explica o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como Deus « fiel a si próprio », fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isto o Filho « que não conhecera o pecado, Deus tratou-o, por nós, como pecado ». E se « tratou como pecado » Aquele que era absolutamente isento de qualquer pecado, fê-lo para revelar o amor que é sempre maior do que tudo o que é criado, o amor que é Ele próprio, porque « Deus é amor ». E sobretudo o amor é maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que « a caducidade do que foi criado », mais forte do que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, sempre em busca da « revelação dos filhos de Deus », que são chamados para a glória futura. Esta revelação do amor é definida também misericórdia; e tal revelação do amor e da misericórdia tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo. 10. Dimensão humana do mistério da Redenção O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo Redentor, como já foi dito acima, revela plenamente o homem ao próprio homem. Esta é — se assim é lícito exprimir-se — a dimensão humana do mistério da Redenção. Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor próprios da sua humanidade. No mistério da Redenção o homem é novamente « reproduzido » e, de algum modo, é novamente criado. Ele é novamente criado! « Não há judeu nem gentio, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher: todos vós sois um só em Cristo Jesus ». O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente — não apenas segundo imediatos, parciais, não raro superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser — deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Ele deve, por assim dizer, entrar n’Ele com tudo o que é em si mesmo, deve « apropriar-se » e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para se encontrar a si mesmo. Se no homem se actuar este processo profundo, então ele produz frutos, não somente de adoração de Deus, mas também de profunda maravilha perante si próprio. Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se « mereceu ter um tal e tão grande Redentor », se « Deus deu o seu Filho », para que ele, o homem, « não pereça, mas tenha a vida eterna ». Na realidade, aquela profunda estupefacção a respeito do valor e dignidade do homem chama-se Evangelho, isto é a Boa Nova. Chama-se também Cristianismo. Uma tal estupefacção determina a missão da Igreja no mundo, também, e talvez mais ainda, « no mundo contemporâneo ». Tal estupefacção e conjuntamente persuasão e certeza, que na sua profunda raiz é a certeza da fé, mas que de um modo recôndito e misterioso vivifica todos os aspectos do humanismo autêntico, está intimamente ligada a Cristo. Ela estabelece também o lugar do mesmo Jesus Cristo — se assim se pode dizer — o seu particular direito de cidadania na história do homem e da humanidade. A Igreja, que não cessa de contemplar o conjunto do mistério de Cristo, sabe com toda a certeza da fé, que a Redenção que se verificou por meio da Cruz, restituíu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo, sentido que ele havia perdido em considerável medida por causa do pecado. E por isso a Redenção realizou-se no mistério pascal, que, através da cruz e da morte, conduz à ressurreição. A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, de ajudar todos os homens a ter familiaridade com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus. Simultaneamente, toca-se também a esfera mais profunda do homem, a esfera — queremos dizer — dos corações humanos, das consciências humanas e das vicissitudes humanas. 11. O Mistério de Cristo na base da missão da Igreja e do Cristianismo O II Concílio do Vaticano realizou um trabalho imenso, para formar aquela plena e universal consciência da Igreja, acerca da qual escrevia o Papa Paulo VI na sua primeira Encíclica. Uma tal consciência — ou antes autoconsciência da Igreja — forma-se « no diálogo », o qual, antes de se tornar colóquio, deve volver a própria atenção para « o outro », ou seja para aquele com o qual queremos falar. O Concílio Ecuménico deu um impulso fundamental para se formar a autoconsciência da Igreja, apresentando-nos, de maneira adequada e competente, a visão do orbe terrestre como de um « mapa » de várias religiões. Além disto, ele demonstrou como sobre este « mapa » das religiões do mundo se sobrepõe em estratos — nunca dantes conhecidos e característicos da nossa época — o fenómeno do ateísmo nas suas várias formas, a começar do ateísmo programado, organizado e estruturado em sistema político. Quanto à religião, trata-se, antes de mais, da religião como fenómeno universal, conjunto com a história do homem desde o início; depois, das várias religiões não cristãs e, por fim, do próprio cristianismo. O documento do Concílio dedicado às religiões não cristãs é, em particular, um documento cheio de estima profunda pelos grandes valores espirituais, ou melhor, pelo primado daquilo que é espiritual, e que encontra na vida da humanidade a sua expressão na religião e, em seguida, na moralidade, que se reflecte em toda a cultura. Justamente os Padres da Igreja viam nas diversas religiões como que outros tantos reflexos de uma única verdade, como que « germes do Verbo », os quais testemunham que, embora por caminhos diferentes, está contudo voltada para uma mesma direcção a mais profunda aspiração do espírito humano, tal como ela se exprime na busca de Deus; e conjuntamente na busca, mediante a tensão no sentido de Deus, da plena dimensão da humanidade, ou seja, do sentido pleno da vida humana. O Concílio dedicou uma particular atenção à religião judaica, recordando o grande património espiritual que é comum aos cristãos e aos judeus, e exprimiu a sua estima para com os crentes do Islão, cuja fé se refere também a Abraão. Em virtude da abertura provocada pelo II Concílio do Vaticano, a Igreja e todos os cristãos puderam alcançar uma consciência mais completa do mistério de Cristo, « mistério oculto por tantos séculos » em Deus, para ser revelado no tempo, no Homem Jesus Cristo, e para se revelar continuamente, em todos os tempos. Em Cristo e por Cristo, Deus revelou-se plenamente à humanidade e aproximou-se definitivamente dela; e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo, o homem adquiriu plena consciência da sua dignidade, da sua elevação, do valor transcendente da própria humanidade e do sentido da sua existência. Importa, pois, que nós todos — quantos somos seguidores de Cristo — nos encontremos e nos unamos em torno d’Ele mesmo. Esta união, nos diversos sectores da vida, da tradição e das estruturas e disciplina de cada uma das Igrejas ou das Comunidades eclesiais, não poderá ser actuada sem um válido trabalho que tenda para se chegar a um conhecimento recíproco e para a remoção dos obstáculos ao longo do caminho para uma perfeita unidade. No entanto, podemos e devemos, já a partir de agora, conseguir e manifestar ao mundo a nossa unidade: no anunciar o mistério de Cristo, no tornar patente a dimensão divina e conjuntamente humana da Redenção, no lutar com infatigável perseverança por aquela dignidade que todos os homens alcançaram e podem alcançar continuamente em Cristo, que é a dignidade da graça da adopção divina e simultaneamente dignidade da verdade interior da humanidade, a qual — se na consciência comum do mundo contemporâneo chegou a ter um realce assim tão fundamental — para nós ainda ressalta mais à luz daquela realidade que é Ele: Jesus Cristo. Jesus Cristo é princípio estável e centro permanente da missão que o próprio Deus confiou ao homem. E nesta missão devemos participar todos, nela devemos concentrar todas as nossas forças, uma vez que ela é mais do que nunca necessária para a humanidade do nosso tempo. E se uma tal missão parece encontrar na nossa época oposições maiores do que em qualquer outro tempo, então esta circunstância está a demonstrar também que ela na nossa época é ainda mais necessária e — não obstante as oposições — mais esperada do que nunca. Aqui tocamos indirectamente naquele mistério da economia divina que uniu a salvação e a graça com a Cruz. Não foi em vão que Cristo disse alguma vez que « o reino dos céus é objecto de violência, e os violentos tornam-se seus senhores »; e, ainda, que « os filhos deste mundo são mais sagazes do que os filhos da luz ». Aceitemos esta admoestação de bom grado, para sermos como aqueles « violentos de Deus » que tantas vezes nos foi dado ver na história da Igreja e que descortinamos ainda hoje, a fim de nos unirmos conscientemente na grande missão, ou seja: revelar Cristo ao mundo, ajudar cada um dos homens para que se encontre a si mesmo n’Ele, ajudar as gerações contemporâneas dos nossos irmãos e irmãs, povos, nações, estados, humanidade, países ainda não desenvolvidos e países da opulência, ajudar todos, em suma, a conhecer as « imperscrutáveis riquezas de Cristo », pois estas são para todos e cada um dos homens e constituem o bem de cada um deles. 12. Missão da Igreja e liberdade do homem Nesta união na missão, da qual decide sobretudo o mesmo Cristo, todos os cristãos devem descobrir aquilo que os une, ainda antes de se realizar a sua plena comunhão. Esta é a união apostólica e missionária, missionária e apostólica. Graças a esta união, podemos juntos aproximar-nos do magnífico património do espírito humano, que se manifestou em todas as religiões, como diz a Declaração do II Concílio do Vaticano Nostra Aetate. E graças à mesma união, abeirar-nos-emos também de todas as culturas, de todas as concepções ideológicas e de todos os homens de boa vontade. E aproximar-nos-emos com aquela estima, respeito e discernimento que, já desde os tempos apostólicos, distinguiam a atitude missionária e do missionário. Basta-nos recordar São Paulo e, por exemplo, o seu discurso no Areópago de Atenas. A atitude missionária começa sempre por um sentimento de profunda estima para com aquilo « que há no homem », por aquilo que ele, no íntimo do seu espírito, elaborou quanto aos problemas mais profundos e mais importantes; trata-se de respeito para com aquilo que nele operou o Espírito, que « sopra onde quer ». A missão não é nunca uma destruição, mas uma reassunção de valores e uma nova construção, ainda que na prática nem sempre tenha havido plena correspondência com um ideal assim tão elevado. A conversão, que da missão deve tomar início, sabemos bem que é obra da graça, na qual o homem há-de encontrar-se plenamente a si mesmo. Por tudo isto, a Igreja do nosso tempo dá grande importância a tudo aquilo que o II Concílio do Vaticano expôs na Declaração sobre a Liberdade Religiosa, tanto na primeira como na segunda parte do Documento. Sentimos profundamente o carácter compromissivo da verdade que Deus nos revelou. Damo-nos conta, em particular, do grande sentido de responsabilidade por esta verdade. A Igreja, por instituição de Cristo, dela é guarda e mestra, sendo precisamente para isso dotada de uma singular assistência do Espírito Santo, a fim de poder guardá-la fielmente e ensiná-la na sua mais exacta integridade. No desempenho desta missão, olhemos para o próprio Cristo, Aquele que é o primeiro evangelizador, e olhemos também para os seus Apóstolos, Mártires e Confessores. A Declaração sobre a Liberdade Religiosa põe a claro, de modo bem convincente, como Cristo e, em seguida, os seus Apóstolos, ao anunciarem a verdade que não provém dos homens, mas sim de Deus — « a minha doutrina não é tão minha como daquele que me enviou », ou seja, o Pai — embora agindo com todo o vigor do espírito, conservam uma profunda estima pelo homem, pela sua inteligência, pela sua vontade, pela sua consciência e pela sua liberdade. De tal modo, a própria dignidade da pessoa humana torna-se conteúdo daquele anúncio, mesmo sem palavras, mas simplesmente através do comportamento em relação à mesma pessoa livre. Um comportamento assim parece corresponder às necessidades particulares do nosso tempo. Uma vez que nem em tudo aquilo que os vários sistemas e também homens singulares vêem e propagam como liberdade está de facto a verdadeira liberdade do homem, mais a Igreja, por força da sua divina missão, se torna guarda desta liberdade, a qual é condição e base da verdadeira dignidade da pessoa humana. Jesus Cristo vai ao encontro do homem de todas as épocas, também do da nossa época, com as mesmas palavras que disse alguma vez: « conhecereis a verdade, e a verdade torna-vos-á livres ». Estas palavras encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de uma relação honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica liberdade; e a advertência, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o mundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como que espedaça essa liberdade nas próprias raízes, na alma do homem, no seu coração e na sua consciência. Que confirmação estupenda disto mesmo deram e não cessam de dar aqueles que, graças a Cristo e em Cristo, alcançaram a verdadeira liberdade e a manifestaram até em condições de constrangimento exterior! E o próprio Jesus Cristo, quando compareceu prisioniero diante do tribunal de Pilatos e por ele foi interrogado acerca das acusações que Lhe tinham sido feitas pelos representantes do Sinédrio, porventura não respondeu Ele: « Para isto é que eu nasci e para isto é que eu vim ao mundo: para dar testemunho da verdade »? Com tais palavras pronunciadas diante do juiz, no momento decisivo, foi como se quisesse confirmar, uma vez mais ainda, o que já havia dito em precedência: « Conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-á livres ». No decorrer de tantos séculos e de tantas gerações, a começar dos tempos dos Apóstolos, não foi acaso o mesmo Jesus Cristo que tantas vezes compareceu ao lado dos homens julgados por causa da verdade, e não foi Ele para a morte, talvez, conjuntamente com homens condenados por causa da verdade? Cessa Ele, porventura, de continuamente ser o porta-voz e advogado do homem que vive « em espírito e em verdade »? Do mesmo modo que não cessa de sê-lo diante do Pai, assim também continua a sê-lo em relação à história do homem. E a Igreja, por sua vez, apesar de todas as fraquezas que fazem parte da história humana, não cessa de seguir Aquele que proclamou: « Aproxima-se a hora, ou melhor, já estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque é assim que o Pai quer os seus adoradores. Deus é espírito, e os que o adoram em espírito e verdade é que o devem adorar ». III. O HOMEM REMIDO E A SUA SITUAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO 13 . Cristo uniu-se com cada um dos homens Quando, através da experiência da família humana, em contínuo aumento a ritmo acelerado, penetramos no mistério de Jesus Cristo, compreendemos com maior clareza que, na base de todas aquelas vias ao longo das quais — de acordo com a sapiência do Sumo Pontífice Paulo VI — a Igreja dos nossos tempos deve prosseguir, existe uma única via: é a via experimentada de há séculos, e é, ao mesmo tempo, a via do futuro. Cristo Senhor indicou esta via sobretudo, quando — como ensina o Concílio — « pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, se uniu de certo modo a cada homem ». A Igreja reconhece, portanto, como sua tarefa fundamental fazer com que uma tal união se possa actuar e renovar continuamente. A Igreja deseja servir esta única finalidade: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer juntamente com cada homem o caminho da vida, com a potência daquela verdade sobre o homem e sobre o mundo, contida no mistério da Encarnação e da Redenção, e com a potência do amor que de tal verdade irradia. Sobre o pano de fundo dos sempre crescentes processos na história, que na nossa época parecem frutificar de modo particular no âmbito de vários sistemas, de concepções ideológicas do mundo e de regimes, Cristo torna-se, de certo modo, novamente presente, malgrado todas as suas aparentes ausências, malgrado todas as limitações da presença e da actividade institucional da Igreja. E Jesus Cristo torna-se presente com a potência daquela verdade e daquele amor que n’Ele se exprimiram como plenitude única e que não se pode repetir, se bem que a sua vida na terra tenha sido breve e ainda mais breve a sua actividade pública. Jesus Cristo é a via principal da Igreja. Ele mesmo é a nossa via para « a casa do Pai » e é também a via para cada homem. Por esta via que leva de Cristo ao homem, por esta via na qual Cristo se une a cada homem, a Igreja não pode ser entravada por ninguém. Isso é exigência do bem temporal e do bem eterno do mesmo homem. Por respeito a Cristo e em razão daquele mistério que a vida da mesma Igreja constitui, esta não pode permanecer insensível a tudo aquilo que serve o verdadeiro bem do homem, assim como não pode permanecer indiferente àquilo que o ameaça. O II Concílio do Vaticano, em diversas passagens dos seus documentos, deixou bem expressa esta fundamental solicitude da Igreja, a fim de que « a vida no mundo /seja/ mais conforme com a dignidade sublime de homem », em todos os seus aspectos, e por tornar essa vida « cada vez mais humana ». Esta é a solicitude do próprio Cristo, o Bom Pastor de todos os homens. Em nome de uma tal solicitude, conforme lemos na Constituição pastoral do Concílio, « a Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confude com a comunidade política nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda do carácter transcendente da pessoa humana ». Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimensão. Não se trata do homem « abstracto », mas sim real: do homem « concreto », « histórico ». Trata-se de « cada » homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério. Todo o homem vem ao mundo concebido no seio materno e nasce da própria mãe, e é precisamente por motivo do mistério da Redenção que ele é confiado à solicitude da Igreja. Tal solicitude diz respeito ao homem todo, inteiro, e está centrada sobre ele de modo absolutamente particular. O objecto destes cuidados da Igreja é o homem na sua única e singular realidade humana, na qual permanece intacta a imagem e semelhança com o próprio Deus. O Concílio indica isto precisamente, quando, ao falar de tal semelhança recorda que o homem é « a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma ». O homem tal como foi « querido » por Deus, como por Ele foi eternamente « escolhido », chamado e destinado à graça e à glória, este homem assim é exactamente « todo e qualquer » homem, o homem « o mais concreto », « o mais real »; este homem, depois, é o homem em toda a plenitude do mistério de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistério de que se tornou participante cada um dos quatro biliões de homens que vivem sobre o nosso planeta, desde o momento em que é concebido sob o coração da própria mãe. 14. Todas as vias da Igreja levam ao homem A Igreja não pode abandonar o homem, cuja « sorte », ou seja, a escolha, o chamamento, o nascimento e a morte, a salvação ou a perdição, estão de maneira tão íntima e indissolúvel unidos a Cristo. E trata-se aqui precisamente de todos e cada um dos homens sobre este planeta, nesta terra que o Criador deu ao primeiro homem, dizendo ao mesmo tempo ao homem e à mulher: « submetei-a (a terra) e dominai-a ». Cada homem, pois, em toda a sua singular realidade do ser e do agir, da inteligência e da vontade, da consciência e do coração. O homem nessa sua singular realidade (porque é « pessoa ») tem uma própria história da sua vida e, sobretudo, uma própria história da sua alma. O homem que, segundo a interior abertura do seu espírito, e conjuntamente a tantas e tão diversas necessidades do seu corpo e da sua existência temporal, escreve esta sua história pessoal, fá-lo através de numerosos ligames, contactos, situações e estruturas sociais, que o unem a outros homens; e faz isso a partir do primeiro momento da sua existência sobre a terra, desde o momento da sua concepção e do seu nascimento. O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção. Este homem assim precisamente, em toda a verdade da sua vida, com a sua consciência, com a sua contínua inclinação para o pecado e, ao mesmo tempo, com a sua contínua aspiração pela verdade, pelo bem, pelo belo, pela justiça e pelo amor, precisamente um tal homem tinha diante dos olhos o II Concílio do Vaticano, quando, ao delinear a sua situação no mundo contemporâneo, se transferia sempre das componentes externas desta situação para a verdade imanente da humanidade: « É no íntimo do homem precisamente que muitos elementos se combatem entre si. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outra, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão graves discórdias se originam para a sociedade ». É este homem assim que é a via da Igreja; via que se encontra, de certo modo, na base de todas aquelas vias pelas quais a Igreja deve caminhar: porque o homem — todos e cada um dos homens, sem excepção alguma — foi remido por Cristo; e porque com o homem — cada homem, sem excepção alguma — Cristo de algum modo se uniu, mesmo quando tal homem disso não se acha consciente: « Cristo, morto e ressuscitado por todos os homens, a estes — a todos e a cada um dos homens — oferece sempre… a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação ». Sendo portanto este homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência quotidianas, da sua missão e actividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da « situação » de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomam sempre nova orientação e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem. Ela deve estar cônscia, outrossim, de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço para que « a vida humana se torne cada vez mais humana » e para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem. Numa palavra, a Igreja deve estar bem cônscia de tudo aquilo que é contrário a um tal processo de nobilitação da vida humana. 15. De que é que o homem contemporâneo tem medo? Conservando, pois, viva na memória a imagem que de maneira tão perspicaz e autorizada traçou o II Concílio do Vaticano, procuraremos, uma vez mais ainda, adaptar este quadro aos « sinais dos tempos », bem como às exigências da situação que muda continuamente e evolui em determinadas direcções. O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com muita rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser, não tanto objecto de « alienação », no sentido de que são simplesmente tirados àquele que os produz, quanto, ao menos parcialmente e num círculo consequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos se voltam contra o próprio homem. Eles passam então, de facto, a ser dirigidos, ou podem ser dirigidos contra o homem. E nisto assim parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana contemporânea na sua mais ampla e universal dimensão. O homem, portanto, cada vez mais vive com medo. Ele teme que os seus produtos, naturalmente não todos e não na maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem ficar a perder de vista. Deve pôr-se, portanto, uma interrogação: por que razão um tal poder, dado desde o princípio ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar a terra, se volta assim contra ele, provocando um compreensível estado de inquietude, de consciente ou inconsciente medo, e de ameaça que de diversas maneiras se comunica a toda a família humana contemporânea e se manifesta sob vários aspectos? Este estado de ameaça contra o homem, da parte dos seus mesmos produtos, tem várias direcções e vários graus de intensidade. Parece que estamos cada vez mais cônscios do facto de a exploração da terra, do planeta em que vivemos, exigir um planeamento racional e honesto. Ao mesmo tempo, tal exploração para fins não somente industriais mas também militares, o desenvolvimento da técnica não controlado nem enquadrado num plano com perspectivas universais e autenticamente humanístico, trazem muitas vezes consigo a ameaça para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas relações com a natureza e apartam-no da mesma natureza. E o homem parece muitas vezes não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem comunicasse com a natureza como « senhor » e «guarda » inteligente e nobre, e não como um « desfrutador » e « destrutor » sem respeito algum. O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo, que é marcado aliás pelo predomínio da técnica, exigem um proporcional desenvolvimento também da vida moral e da ética. E no entanto este último, infelizmente, parece ficar sempre atrasado. Por isso, este progresso, de resto tão maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar também os autênticos sinais da grandeza do mesmo homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são revelados nas páginas do Livro do Génesis, na descrição da sua mesma criação, este progresso não pode deixar de gerar multíplices inquietações. Uma primeira inquietação diz respeito à questão essencial e fundamental: Este progresso, de que é autor e fautor o homem, torna de facto a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspectos, « mais humana »? Torna-a mais « digna do homem »? Não pode haver dúvida de que, sob vários aspectos, a torna de facto tal. Esta pergunta, todavia, retorna obstinadamente e pelo que respeita àquilo que é essencial em sumo grau: se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos. Esta é a pergunta que os cristãos devem pôr-se, precisamente porque Cristo os sensibilizou assim de modo universal quanto ao problema do homem. E a mesma pergunta devem também pôr-se todos os homens, especialmente aqueles que fazem parte daqueles ambientes sociais que se dedicam activamente ao desenvolvimento e ao progresso nos nossos tempos. Ao observar estes processos e tomando parte neles, não podemos deixar que se aposse de nós a euforia, nem podemos deixar-nos levar por um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas; mas todos devemos pôr-nos, com absoluta lealdade, objectividade e sentido de responsabilidade moral, as perguntas essenciais pelo que se refere à situação do homem, hoje e no futuro. Todas as conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projectadas pela técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem? Neste contexto o homem, enquanto homem, desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, « no mundo do homem » — que é em si mesmo um mundo de bem e de mal moral — o bem ou o mal? Crescem verdadeiramente nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem — de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de cada povo — ou, pelo contrário, crescem os egoísmos de vário alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor da pátria, e, ainda, a tendência para dominar os outros, para além dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou em favor deste ou daqueloutro imperialismo? Eis as interrogações essenciais que a Igreja não pode deixar de pôr-se, porque, de maneira mais ou menos explícita, as põem a si próprios biliões de homens que vivem hoje no mundo. O tema do desenvolvimento e do progresso anda nas bocas de todos e aparece nas colunas de todos os jornais e nas publicações, em quase todas as línguas do mundo contemporâneo. Não esqueçamos, todavia, que este tema não contém somente afirmações e certezas mas também perguntas e angustiosas inquietudes. Estas últimas não são menos importantes do que as primeiras. Elas correspondem à natureza dialéctica fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua própria humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra. A Igreja, que é animada pela fé escatológica, considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado com ela. E o princípio de uma tal solicitude encontra-o a mesma Igreja no próprio Jesus Cristo, como testemunham os Evangelhos. E é por isso mesmo que ela deseja acrescê-la continuamente n’Ele, ao reler a situação do homem no mundo contemporâneo, segundo os mais importantes sinais do nosso tempo.

continuação

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