Reconciliar e Reconstruir

Tudo começou bem para Angola: Bento XVI decidiu incluir este país lusófono na sua primeira viagem a África. Uma honra enorme que deveria significar um apreço grande do Vaticano pelas intervenções da Igreja angolana durante a guerra e neste período de reconstrução nacional. Um risco enorme de, tal como acontecera em 1992, com João Paulo II, haver aproveitamento político por parte das autoridades, em ano de eleições. Os Partidos Históricos, MPLA, UNITA e FNLA, consideram todos muito positiva a decisão do Papa visitar Angola. Dos Camarões a Luanda Depois de Bento XVI ter entregue o ‘Documento de Trabalho’ do II Sínodo Africano aos Bispos, levantou voo rumo a Luanda onde banhos de multidão em festa aguardavam o Papa. Lamentava eu o facto de não estar em Angola (como acontecera em 1992, aquando da Visita de João Paulo II), mas acabaria por acompanhar de perto e por dentro esta viagem papal porque fui convidado a comentá-la na SIC, na TVI e na RTP. A ‘obrigação’ permitiu-me ver as cerimónias, ouvir o Papa e acompanhar a festa que o povo fez e as reacções que esta visita foi suscitando um pouco por todo o lado. Partilho o que vi, ouvi e senti. Papa e Presidente A chegada a Luanda foi de troca de galhardetes. O Presidente da República evocou valores cristãos de fundo (dignidade, justiça, solidariedade, liberdade, paz) como base para a reconstrução de Angola e salientou o papel importante que a Igreja Católica desempenhou na ‘luta’ pela Paz e está agora a investir na recuperação do tecido social atingido pela guerra. Sobre a situação, falou das melhorias que se sentem e do ainda longo caminho a percorrer. Eduardo dos Santos surpreendeu-me pela humildade como pôs a nu, com dados estatísticos, a situação precária em que vive mais de metade do povo angolano. Prometeu combater estes ‘tremendos desafios a superar’, apelou a uma política fiscal mais justa e denunciou a corrupção existente no país. Tudo isto porque, segundo o Presidente, a guerra atingiu o corpo e alma dos angolanos. Não poupou elogios á intervenção da Igreja sobre a Paz, dizendo que ela é a instituição melhor posicionada para ajudar na reconstrução de uma Angola mais justa, equilibrada e digna, pois tem força moral para influenciar os corações dos que decidem. Bento XVI pediu que não se vivesse segundo a lei dos mais fortes e recordou a multidão de angolanos vítimas da pobreza. Referiu a necessidade de uma comunicação social livre, uma administração pública honesta, uma rede de saúde e educação que atinja todos os angolanos. Falou ainda da boa governação, da necessidade dos países mais ricos atribuírem os 0,7% do PIB prometido ao desenvolvimento dos países mais pobres e apelou ao fim das discriminações de que são vítimas as mulheres. Foi claro ao afirmar que a Igreja estará sempre ao lado dos mais pobres. Dos Coqueiros à Cuca E as celebrações começaram. A Eucaristia com o ‘pessoal missionário’, em S. Paulo, foi muito formal e ‘europeia’, marcada pela homenagem aos missionários e pela condenação da feitiçaria, realidade que nós, europeus, nunca chegamos a perceber bem. Nos Coqueiros, o encontro com os jovens foi um momento de grande festa, apenas estragada pelas duas jovens mortas e pelos feridos. Cânticos, danças, coreografias encheram de música, cor e movimento o estádio. O Papa disse que os jovens eram uma festa e o símbolo da esperança. Recordou que ‘Deus faz a diferença’. Pediu-lhes que não tivessem medo de tomar decisões para a vida (matrimónio, sacerdócio, vida consagrada), pois quem não se decida arrisca a ficar uma eterna criança. O momento mais forte foi o do encontro com jovens mutilados, tendo um deles, ali na sua frente, entoado uma canção muito emocionada e ovacionada. O domingo ultrapassaria as expectativas mais optimistas. Aguardavam-se 500 mil pessoas para a grande Missa papal. Estavam mais de um milhão, a cantar, a dançar, sob um calor tórrido. Neste IV Domingo da Quaresma que, em Angola, é o Dia Nacional da Reconciliação, Bento XVI falou da guerra, com as suas terríveis consequências e da paz, fruto da reconciliação dos corações. O momento da apresentação das ofertas foi a grande festa da celebração da diversidade cultural. Representantes das Dioceses ofereceram a Bento XVI peças de artesanato e produtos agrícolas. Angola, pela primeira vez, parecia estar ali toda naquele ampla esplanada da Cimamgola. A tarde teve direito ao momento mais original de todas as visitas papais que eu já acompanhei: o encontro exclusivo para as mulheres, na Igreja de S. António da Cuca. Ali se disse que a mulher africana é uma instituição fantástica. Ali se provou que, durante a guerra, foram as mulheres quem mais influenciou a chegada da paz. Mas também se denunciaram discriminações de toda a ordem, abusos, violência doméstica e outras situações que espezinham os direitos das mulheres. Na hora do regresso a casa, ficou claro que o Papa veio confirmar a Missão da Igreja em Angola, denunciar os indicadores negativos da sociedade angolana e fazer uma proposta de mudança, que passa pela transparência, pela justiça social, pelo combate à pobreza e pela solidariedade. Tony Neves, Missionário Espiritano e Director da Acção Missionária

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