Reaprender a gramática da hospitalidade

Homilia de D. Américo Aguiar na Missa do dia 13 de junho, na Peregrinação Internacional Aniversário ao Santuário de Fátima

1.“Voltaremos… Sim, voltaremos! É a nossa confiança e o nosso compromisso, hoje. Voltaremos, juntos aqui, em ação de graças, para te cantar: ‘aqui vimos, mãe querida, consagrar-te o nosso amor’!”[1]Foram estas as inspiradoras palavras com que o senhor Cardeal Marto encerrou a peregrinação aniversária de Maio passado.

Nessa mesma celebração ouvíamos do nosso querido Papa Francisco: “Com estas minhas palavras, queria apenas tranquilizar-vos a respeito da companhia que vos faz a nossa Mãe do Céu. Hoje conseguimos, através apenas da alma e do coração, fazer a ligação à Virgem Maria; e somos limitados! Tão limitados, tão pequeninos que um inesperado vírus pôde facilmente transtornar tudo e todos… Nossa Senhora é pequenina como nós, ela abandonou-Se a Deus e Ele engrandeceu-A, fazendo-A Mãe sua e nossa. Hoje, gloriosa em corpo e alma, toda Ela é um coração materno ocupado e preocupado em restabelecer a sua ligação connosco e a nossa ligação com Deus. Não esqueçais a sua promessa de 13 de junho de 1917: «O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus»[2].

E aqui chegamos, hoje… voltando, regressando… desconfinando…enchemos com as nossas preces este Altar do mundo, dirigimos o nosso olhar à imagem de Nossa Senhora de Fátima que completa cem anos de existência (foi encomendada por um devoto de Torres Novas, Gilberto Fernandes dos Santos, à Casa Fânzeres, de Braga e obra do santeiro José Ferreira Thedim) e vemos duas crianças, os santos Francisco e Jacinta Marto com quem temos tanto para aprender. Tal como acontece com o Evangelho que escutamos , que nos coloca perante a sabedoria de uma criança: o episódio do Menino Jesus que no templo ensina aos doutores da Lei (Lc 2,46) como se deveria ler o Livro da Escritura.

 

  1. Ensinar e aprender… Partindo disto, o mote bíblico deste ano do Santuário de Fátima interpela-nos com o mandamento petrino: «Sede santos» (1Pe 1,15). De facto, antes da grande mudança eclesiológica do Vaticano II em 1965, pensava-se que a santidade era um propósito apenas para os bispos, padres e religiosas. Mas este Concílio trouxe-nos uma novidade: todo o ser humano é chamado à santidade[3].

O Papa Francisco deixa-nos uma expressão bela ao falar da «classe média da santidade», no sentido de que a santidade não é somente uma certeza escatológica, mas uma realidade que se vive aqui e agora no nosso quotidiano[4]. Há três anos, o Papa disse-nos que a Virgem Maria não apareceu aqui em Fátima para que a víssemos, mas para nos recordar a «Luz de Deus que nos habita e cobre»[5]. A santidade não é, portanto, a recompensa final de uma vida cristã, mas um caminho gradual de identificação com a pessoa de Jesus[6], guiados por esta luz de Deus.

 

  1. Uma das grandes lições que a humanidade aprendeu com a covid-19 é que os nossos pequenos gestos podem ter uma consequência não só em relação a quem está próximo, mas também comunitária e mesmo até universal. Perante isto, todos teremos de reaprender a «gramática da hospitalidade»: somos responsáveis pela saúde, o bem-estar, a alegria e a salvação dos outros! A hospitalidade é um ato racional permanente de acolhimento do outro. E o «grau de civilização de uma sociedade pode medir-se precisamente em função da sua hospitalidade»[7].

Aliás, a nossa União Europeia terá de perceber que já não basta ser aquela original comunidade económica e política, mas terá de dar o passo seguinte: ser uma verdadeira comunidade humana, mais hospitaleira, determinada no combate solidário às consequências económicas e sociais desta pandemia, decidida no acolhimento de todos e apostada no respeito pela casa comum que todos habitamos.

Que a solidariedade europeia não seja uma urgência pandémica mas uma marca da sua identidade! Que a ajuda entre povos e países europeus não resulte do medo provocado por um vírus, mas seja um ímpeto do humanismo e da matriz cristã que caracteriza o velho continente. Só com essa determinação asseguramos o nosso futuro e o das gerações vindouras, feito cada vez mais do encontro entre povos, culturas e religiões.

Tal como no evangelho que escutamos: por vezes, pensamos que por sermos doutores da lei, doutores da sociedade, da política, da economia, do progresso, doutores da vida… já não temos nada a aprender com os mais novos, já não temos nada a aprender com aquele menino Jesus (Rm 5,18)!

Este é um grande risco que corremos, quando pensamos, que já nada temos a aprender, sobretudo com as crianças. E recordo aqui a alegria de ver este recinto cheio de crianças a cada dia 10 de Junho. Este ano foi diferente, mas cá voltarão para o ano, se Deus quiser! Sim, voltarão…

  1. Hoje, aquilo que certamente Deus nos pede para esta nova fase da humanidade, a pós-globalização, é somente isto: uma santidade que consiste em acolher com hospitalidade o outro, vítima do efeito socioeconómico desta pandemia. Pois, como escutávamos na primeira leitura, o maior tesouro que temos para oferecer ao mundo é a esperança (Jdt 13,19).

Ouvimos o Cardeal Tolentino dizer que “Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”[8].

Quando olhamos a biografia dos três pastorinhos de Fátima, vemos como Deus escolhe as crianças para nos comunicar verdades profundas (Mt 18,1-6). Quando lemos e conhecemos a história de vida da Irmã Lúcia somos convidados a valorizar a importância e urgência de uma relação inter-geracional… não permitamos que nos dividam entre novos e velhos, pobres e ricos, brancos e pretos, do norte e do sul, azuis ou vermelhos…ou outras cores… não deixemos que a nossa velha Europa se queira esquecer, arrancar-se das suas raízes… até aqui chegamos… à Pandemia.

Disse-nos o Papa Francisco naquele inesquecível fim de tarde “Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”[9]. Como descrevia a irmã Lúcia, somos habitados por uma graça que nos faz ver Deus em nós[10].

Agora talvez possamos entender melhor a urgência de uma economia nova, de Francisco, que não mate. Agora talvez possamos entender melhor a urgência destas palavras do Papa Francisco “Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspetos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais”[11].

 

  1. Para terminar, nossa querida Senhora de Fátima: hoje queremos agradecer-Te por nos recordares que não estamos abandonados à nossa sorte neste mundo[12], mas que temos uma Mãe. E, como se cantava no salmo (Lc 1,46-52), é esta maravilha que temos a anunciar ao mundo:

 

Que…

Temos uma Mãe, para os jovens e os mais idosos!

Para os pobres e os abandonados!

Para os doentes e as pessoas com debilidade!

Temos uma Mãe, para os que perderam o emprego!

Para os que desesperam pelo perdão!

Para os refugiados da guerra e as vítimas de injustiça!

Temos uma Mãe, para todos os emigrantes que vivem longe das suas mães!

Para os que perderam a esperança num mundo melhor!

Para os que deixaram de acreditar no Crucificado!

Temos uma Mãe, para todos os peregrinos que buscam o sentido de Deus!

Para todos os heróis anónimos no combate ao covid-19!

E, por causa desta pandemia, temos também uma Mãe para todos os filhos

que perderam a sua mãe,

e para todas as mães que perderam os seus filhos!

Mãe continua a guardar tudo e todos no teu Imaculado Coração.

+ Américo Aguiar, Bispo Auxiliar de Lisboa

[1] Cfr. ANTÓNIO MARTO, Homilia na Missa do Santuário de Fátima do dia 13 de maio de 2020

[2] Cfr. PAPA FRANCISCO, Carta aos Peregrinos de Fátima, 8 de maio 2020

 [3] Lumen Gentium, 32.

 [4] Papa Francisco, Gaudete et Exsultate, 7.

 [5] Cfr. Papa Francisco, Homilia na Santa Missa com o Rito da Canonização dos Beatos Francisco e Jacinta Marto, 13 de maio de 2017.

 [6] Cfr. José Tolentino Mendonça, Elogia da Sede, 103.

 [7] Byung-Chul Han, A expulsão do Outro, 28.

[8] Cfr Cardeal Tolentino Mendonça, Discurso do Dia de Portugal, Mosteiro dos Jerónimos, 10 de junho de 2020

[9] PAPA FRANCISCO , Momento Extraordinário de Oração em tempo de Pandemia, Praça de S. Pedro, 27 de março de 2020

[10] Cfr. Memórias da Irmã Lúcia IV, Aparições de 13 de maio, 174.

[11] PAPA FRANCISCO, Laudato Si, 137

[12] Cfr. António Marto, Fátima. Mensagem de misericórdia e de esperança para o mundo, 21.

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