Realeza de Cristo não se refere a estratos sociais

Homilia de D. Armindo Lopes Coelho, na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo O título desta Celebração litúrgica é certamente uma ilusão ou um desencanto para quem interpretar à letra ou mesmo analogicamente o sentido das palavras. É certo que na história da piedade cristã, no desejo e aspiração de movimentos religiosos em confronto com correntes sociais ou políticas, a Realeza de Cristo foi entendida e proclamada com intenção menos isenta e até com expressões tão exteriores como inexactas. Falar da Realeza de Cristo, e da Realeza universal, não pode entender-se no sentido da nossa linguagem normal relativa a estratos sociais ou regimes políticos, com capacidade de influência e de poder. Na verdade é de Deus que falamos, e de Deus que se revelou, veio até nós e está connosco na Pessoa de Seu Filho, Jesus Cristo. Ora, Jesus Cristo foi pré-figurado em David, que os anciãos de Israel ungiram como rei, depois de o Senhor lhe ter dito: “Tu apascentarás o meu povo de Israel, tu serás rei de Israel” (Cf. 2 Sam. 5, 1-3). Ungido, pastor e rei são três das dimensões que indicaram profeticamente Jesus, o Cristo ou Messias, Pastor e Rei. Enquanto Messias, ungido pelo Espírito e enviado a realizar a missão de Salvador, Cristo, o Messias, é a resposta de Deus às preces e expectativas do seu Povo. Mas aquilo que o primeiro povo de Deus vê concretizar-se de algum modo com o rei David e na esperança de realização no mesmo sentido e em âmbito mais vasto e concludente, não é senão figura e anúncio do que acontecerá e aconteceu com o Messias, Jesus Cristo, na História do Povo último e definitivo que principiou com a sua encarnação e paixão. E de facto a Realeza de Jesus, que hoje celebramos com solenidade, é exactamente o contrário da que no nosso mundo a sociedade experimenta, vive ou suporta. Às vezes tem-se a impressão de que muitos cristãos não passaram do Antigo Testamento, não passaram além dos tipos ou figuras que apontam mas estão longe da realidade figurada e concretizada, sonham ainda com triunfos ou vitórias, com grandezas e exaltações devidas à sua fé cristã e à sua condição de pertença à Igreja. Mas o rosto do nosso Rei é o do “servo sofredor” que o Evangelho apresenta em sofrimento e Paixão. È o Messias e Rei, em Paixão que levou à morte. È exactamente enquanto Messias e Rei que Ele sofre e é vítima de zombaria, como Messias que enganou e como Rei fracassado. Protagonistas deste cenário, premonitório para nós, são, no dizer dos Evangelistas, os chefes dos judeus, os soldados e um malfeitor: “Salvou os outros: salve-se a Si mesmo, se é o Messias de Deus”; “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo”; “Não és Tu o Messias? Salva-te a Ti mesmo e a nós também”; Este é o Rei dos judeus”, dizia uma legenda fixada na cruz (Cf. Lc. 23, 35-43). Estas cenas do Calvário significam que a Realeza de Cristo constituiu uma ilusão e uma frustração para quantos identificaram a realeza com poder, força, vingança, prestígio e grandeza, ou então não chegaram a acreditar na messianidade (em qualquer tipo de messianidade de Cristo). Mas hoje ou o Calvário aumentou ou se multiplicou em inúmeros calvários onde as diversas sociedades, classes ou individualidades continuam a invectivar o Senhor, ou porque é Rei, ou porque é Salvador, ou porque não acreditam no Salvador e na Salvação, ou porque se encontram perplexos perante tantos Messias, tantos salvadores, tantos reis e senhores, tantas formas e modelos de salvação, ou porque se deixaram afundar em ateísmo, agnosticismo, indiferentismo, cepticismo ou desespero. (Há ismos que desapareceram mas há ismos que permanecem, agora ao lado de novos ismos que foram inventados, ao serviço de ideologias que resistem ao tempo e a todo o esforço de mudança). Actual na doutrina e aparentemente actualizado quando reflecte e denuncia a sociedade contemporânea (dele e nossa), S. Paulo, que estava preso em Roma, sabia das fantasias dos cristãos que evangelizara e entretanto se tinham deixado seduzir por doutrinas estranhas sobre a existência de poderes e espíritos superiores a Cristo e dominadores do universo. Na sua resposta e recuperação de mentalidades e da fé cristã, S. Paulo entoa um hino a Cristo, porventura o mais belo, mais doutrinal e completo exemplo de Cristocentrismo na Escritura e para a Teologia (Cristologia): Ele tem o primado de todas as criaturas, porque n’Ele, por Ele e para Ele tudo foi criado. E é o primeiro na nova criação, porque n’Ele temos a redenção e por Ele foram reconciliadas consigo todas as coisas. É a imagem de Deus invisível, anterior a todas as coisas, n’Ele tudo subsiste. É a cabeça da Igreja, que é o seu corpo (Cf. Col. 1, 12-20). Mesmo que seja naturalmente difícil aceitar a ideia de um rei que triunfa quando é condenado, ou assimilar o facto de sermos salvos na morte e pela morte de Deus, este é o mistério de Deus que se fez Homem, e é o mistério da Realeza que celebramos. No momento crítico do julgamento que o levou à Paixão e morte, Cristo afirmou a Pilatos: “Sou Rei”; “O meu Reino não é deste mundo”; “Se nasci, se vim a este mundo, foi para dar testemunho da Verdade” (Jo. 18, 36 e 37). Quando hoje celebramos a Solenidade de Cristo Rei, não podemos senão pensar neste “Reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (Prefácio). É o reino de Deus que Jesus Cristo veio iniciar, o Reino de Cristo confiado à Igreja para ser edificado no mundo em que vivemos, e no qual devemos viver com fé, realismo e esperança. Referindo-se à situação da Igreja na Europa, o Santo Padre lembrou-nos há pouco tempo que nesta Europa se verifica um “ofuscamento da esperança” (Exort. Apost. “Ecclesia in Europa”, n.º 7), apesar dos sinais e da nostalgia da esperança. E na Carta Encíclica “Ecclesia de Eucharistia” reconhece que: “Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também, continua, que dizer das mil contradições dum mundo “globalizado”, onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor” (n.º 19). É este o Reino de Deus e é este o estado deste Reinado de Cristo e da Igreja no mundo. E é por isso ainda que o Papa diz: “Anunciar a morte do Senhor até que Ele venha” (I Cor. 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformar a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda “eucarística” (Ibid.). “A Igreja vive da Eucaristia, diz categoricamente o Papa. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja” (Eccl. de Euch. n.º 1), porque “o sacrifício eucarístico é fonte e centro de toda a vida cristã” (L.G. 11). Os principais documentos pontifícios que prepararam o Grande Jubileu do ano 2000, e inspiraram a Igreja para o início e orientação pastoral no terceiro milénio da era cristã são dominados por este pensamento e intenção do Papa, que reconhece: “A ideia de semelhante iniciativa eucarística já a trazia há tempo dentro de mim: de facto constitui o desenvolvimento natural da orientação pastoral que quis imprimir à Igreja” – Carta Apostólica “Mane nobiscum domine” (n.º 4). – “Fica connosco, Senhor, pois a noite vai caindo” (Cf. Lc. 24, 29): É desta fonte bíblica que ilumina, pela fracção do pão, o mistério do Senhor morto e ressuscitado, e o mistério do Reino de Deus, que João Paulo II parte para nos convidar a celebrar o Ano da Eucaristia, entre Outubro de 2004 e Outubro de 2005. Inspirou-se em três acontecimentos da Igreja: O Congresso Eucarístico Internacional (México, 10 a 17 de Outubro de 2004); a Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, que terá lugar no Outono de 2005 e tratará de “A Eucaristia fonte e ápice de vida e da missão da Igreja”; e a Jornada Mundial da Juventude, que se realizará na Alemanha (Colónia) entre 16 e 21 de Agosto de 2005. Nesta Carta Apostólica o Papa diz: “Conto com a solicitude pessoal dos pastores das Igrejas particulares (as dioceses), aos quais a devoção por tão grande Mistério não deixará de sugerir as oportunas iniciativas… que não vêm dificultar de modo algum os programas pastorais das diversas Igrejas” (n.º 5). Temos o nosso programa pastoral diocesano, mas durante o Ano da Eucaristia, que já começou, daremos relevo de fundo ao Mistério e à devoção da Eucaristia, que constitui a raiz e o segredo da vida espiritual dos fiéis e de cada iniciativa pastoral em curso. Oportunamente daremos as instruções adequadas para a vivência, celebração e devoção da Eucaristia, que está no centro do processo de crescimento da Igreja e de construção do Reino de Deus na perspectiva da nossa fé cristã. Sé Catedral do Porto, 21 de Novembro de 2004 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto

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