Quaresma na clausura

Ir. Maria Albertina Monteiro de Azevedo fala da caminhada na espiritualidade da Quaresma no «deserto do seu claustro» na Vila das Aves A Quaresma, introduzindo-nos no mistério pascal, coloca-nos num tempo favorável de Misericórdia. “É agora o tempo favorável, é agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2) A liturgia quaresmal está escrita com os sentimentos e a linguagem da misericórdia e toda a espiritualidade quaresmal assenta em duas vertentes: a Misericórdia como atributo fundamental e relevante de Deus; e, motivada pela misericórdia, a conversão, como atitude ascética fundamental do homem que, sensibilizado pelo amor misericordioso de Deus, deseja corresponder-lhe. Misericórdia e conversão são duas realidades convergentes e consequentes: a misericórdia apela, motiva à conversão e esta é consequência daquela. Elas exprimem, na Bíblia, um tipo fundamental de encontro de Deus com o homem e do homem com Deus. A Quaresma pretende preparar esse encontro. Ao ritmo da liturgia, acompanhamos o povo de Israel na travessia pelo deserto de olhar fito no Sinai, onde o encontro em aliança conduz a uma nova mentalidade pautada pela Lei. Vós sereis o meu povo, Eu serei o vosso Deus. Sabemos que, em linguagem bíblica, o deserto é, antes de mais, uma realidade interior da fé, uma atitude espiritual do crente; o lugar da solidão das coisas do mundo para se tornar o lugar da intimidade e do encontro do homem com o seu Deus. (1) Esta nova mentalidade ou metanoia é apontada como actividade específica do tempo da Quaresma. Diremos que, para um cristão, o tempo da Quaresma será um interiorizar, um reavivar, em deserto, o sentido da sua Fé no Mistério da Redenção, que irá celebrar na Páscoa. Nessa caminhada se irá realizando a metanoia, entendida como libertação interior daquilo que impede a adesão pessoal aos critérios evangélicos. E, neste sentido, apraz-nos recordar a mais antiga acepção do termo Páscoa como “passagem das pastagens secas do Inverno ao pasto verdejante da Primavera”. A Quaresma será, para o cristão, o despertar do Inverno melancólico de uma fé rotineira para a alegria primaveril de uma consciência desperta à Fé celebrada e vivida no Mistério Pascal. Também Jesus se retirou ao deserto antes de iniciar a vida pública. “Os quarenta dias das tentações de Jesus no deserto representam toda a sua vida, desde o Baptismo até à morte – terra prometida de encontro com o Pai”. (2) O deserto aparece, assim, como elemento essencial para que se realize o encontro: consigo, com Deus e com os outros. Os subsídios que a Igreja apresenta, como a meditação da Palavra, a penitência, o jejum, a confissão, inserem-se nesta caminhada para o encontro. Se, para os israelitas, a pessoa de Moisés era guia na caminhada, o Novo Moisés, Jesus, não só é guia mas o próprio Caminho e a Vida Nova que buscamos e Ele mesmo oferece. Este caminhar com os olhos fitos em Jesus, autor da nossa fé, constitui o âmago da espiritualidade franciscana e clareana. O núcleo das exortações de Clara aparece, lapidar, na 2ª Carta a Inês de Praga: Abraça a Cristo Pobre. Contempla-O desprezado por teu amor e segue-O tornando-te desprezível por Ele neste mundo. Contempla, nobre Rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos mortais. Morreu na Cruz no meio dos maiores sofrimentos, golpeado e vezes sem conta açoitado em todo o corpo. Olha, medita, contempla e que o teu coração se inflame na sua imitação. (3) No deserto do seu claustro, Clara aprendera a fixar o Rosto do Cristo de S. Damião que dera ser à Ordem Franciscana e, contemplando-O, chegara ao paraíso do Encontro. É esse caminho que ela aponta, com a autoridade que lhe confere a experiência de longos anos que a converteram numa mulher livre, realizada nas suas grandes aspirações. Olha, medita, contempla: Clara oferece-nos a chave da caminhada no deserto da Quaresma. A Revelação do verdadeiro Rosto de Jesus, o deixar-se cativar por Ele, será o meio de chegar à metanoia, na alegria da liberdade interior. Os grandes casos de conversão como Francisco de Assis atestam-no eloquentemente. O fulcro, o centro de toda a vida espiritual de Francisco, foi, até ao fim da vida, a contemplação do Senhor Jesus crucificado, até se configurar interior e exteriormente com Ele. A este propósito Inácio de Larrañaga afirma com propriedade: Faz-me impressão a frequência e a segurança com que se afirma hoje que Francisco chegou a Deus através do homem, através dos pobres. Estão em moda esses conceitos, mas nada há de mais contrário ao processo histórico da vida de S. Francisco e às suas próprias palavras. No seu Testamento, recorda Francisco: ‘O Senhor levou-me para o meio dos leprosos e usei de misericórdia para com eles’. Ou seja, primeiro encontrou o Senhor, e foi o Senhor que o levou pela mão até aos leprosos, e não o contrário… (4) Se o mistério da encarnação introduz na consciência da fraternidade universal “ao encarnar Cristo une-se, de certo modo, a todo o ser humano”, (5) o mistério da Redenção faz-nos curvar de respeito perante toda a humana criatura assim redimida pelo Senhor, com o Seu próprio Sangue. A contemplação do amor infinito do Senhor Jesus irmana, nivela culturas e posições sociais. Já não há judeu nem grego… (Gl 3,28) é por isso que, a contemplação silenciosa dentro dum Mosteiro, longe de isolar ou afastar do mundo, aproxima, num sentido muito profundo, das pessoas e suas realidades, concretizando-se numa comunhão real com as necessidades apresentadas. A partir de Cristo, sob a perspectiva do seu Amor infinito, tudo adquire nova forma e nova cor. Valorizar sob o olhar de Cristo na Cruz cada situação de dor ou fraqueza; apreciar toda a realidade humana desde o Monte calvário, associa-nos ao sentir do mesmo Cristo, aos seus sentimentos de misericórdia. A contemplação amorosa do Senhor assim entregue por amor, que na Cruz pede perdão para os que o matam – Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem – enche de comoção quem d’Ele se aproxima e incute, por si, horror ao mal, mais que os impropérios da Semana Santa. S. Leonardo de Porto Maurício assegura que a devoção da Via-Sacra é um antídoto contra grandes males, uma das melhores formas de reacender o fogo do Espírito. Trata-se do mesmo método, contemplação dos sofrimentos do Senhor, cerne da espiritualidade da Quaresma, como motor da metanoia, que fará desta caminhada um estribilho gozoso – Cristo amou-me e entregou-se por mim – a ser cantado ardentemente no ALELUIA pascal. Ir. Mª Albertina Monteiro de Azevedo, OSC, Mosteiro de Vila das Aves NOTAS: 1 Símbolos na Bíblia, Herculano Alves, Ed. Difusora Bíblica, 2001, p.120 2 Ibidem, p.122 3 Fontes Franciscanas II, Editorial Francis-cana, Braga, 1996 4 O Irmão de Assis 3ª edição, Edições paulistas 1991, pág. 40. 5 GS 22

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top