Quaresma e o Sacramento do Perdão

Mensagem Quaresmal dos Bispos de Évora Caríssimos irmãos e irmãs! O tempo quaresmal constitui um maravilhoso itinerário espiritual de preparação para a celebração do Mistério Pascal do Senhor, centro da fé e da vida cristã, conscientes de que Cristo é a Luz e a Vida dos homens e de que, pela Sua Igreja, e, na Sua Igreja, nos chama a realizar o projecto divino acerca da nossa “ íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” ( L G 1 ). 1. Quaresma tempo de conversão e imitação de Cristo Chamados à santidade, procuramos conformar o modo de pensar e agir, revivendo a experiência de Cristo que desde o baptismo no Jordão caminhou para o ‘baptismo da Sua morte’ (Mc.10,38;Lc.12,50) e, cheios de amor, contemplamos o mistério do coração trespassado do Redentor donde nasce a Igreja e provém toda a eficácia dos sacramentos. O testemunho concorde do Espírito, da água e do sangue ( cf 1 Jo 5, 5-8 ) manifesta o ‘renascer da água e do Espírito’, para entrar no Reino de Deus ( Jo,3,5 ), em virtude da eficácia do Mistério Pascal de Cristo, que deu a vida por nós. Na Morte e Ressurreição do Senhor residem a fonte e a causa da reconciliação, no duplo aspecto de libertação do pecado e de comunhão com Deus, como diz S. Paulo:“ Cristo morreu por todos para que os que vivem não vivam mais para si mesmos mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou… Tudo vem de Deus que por meio de Cristo nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação” ( 2 Cor 5,15.18 ). A Quaresma é ocasião propícia para nos abeirarmos do Sacramento da Penitência, deixando-nos reconciliar com Deus, pela conversão ou renovação da mente, da vontade, dos afectos e do agir, que reclamam uma contínua conformação à Vida de Jesus, morto e ressuscitado, de modo a saborearmos a ‘Misericórdia divina’, que, como disse João Paulo II, constitui sempre “ um limite imposto ao mal ” (Memória e Identidade”, 58). Falando do desenvolvimento integral da pessoa humana, como programa para esta Quaresma, e comentando a passagem do Evangelho que diz:“ Jesus, ao ver as multidões, encheu-se de compaixão por elas” ( Mt. 9,36 ), o Papa Bento XVI afirma: “ A Quaresma é o tempo privilegiado da peregrinação interior até Àquele que é a fonte da misericórdia. Nesta peregrinação, Ele próprio nos acompanha através do deserto da nossa pobreza, amparando-nos no caminho que leva à alegria intensa da Páscoa. Mesmo naqueles “ vales tenebrosos” de que fala o salmista (Sl. 23,4), enquanto o tentador sugere que nos abandonemos ao desespero ou deponhamos uma esperança ilusória na obra das nossas mãos, Deus guarda-nos e ampara-nos ”. De facto, o ‘pai da mentira’, adopta uma dupla estratégia para nos perder. Primeiro, começa por nos seduzir com a ilusão do pecado, procurando ocultar e minimizar a sua maldade e fealdade e bem assim as dramáticas consequências da acção pecaminosa, facilitando tudo e mascarando sempre de bem o mal que ele nos leva a praticar. Depois, uma vez mergulhados no atoleiro do pecado, muda de estratégia, atemorizando-nos, conduzindo-nos ao desespero e à impotência, de forma a cairmos na situação de impenitência, isto é, convencendo-nos de que já não há remédio e de que nada nem ninguém nos poderá arrancar do abismo em que caímos. 2. Creio na remissão dos Pecados Contra a tentação do desespero, de que o pecado é irremissível e não tem cura, está, e nos foi dada, aquela grata e consoladora certeza de fé e confiança na Misericórdia de Deus, que é infinitamente maior que o nosso pecado, por mais grave que ele seja. A Misericórdia de Deus constitui um limite intransponível à força desagregadora e aniquiladora do pecado, como dizemos, no Credo: “ Professo um só baptismo para a remissão dos pecados” e, no Símbolo dos Apóstolos: “Creio na remissão dos pecados”. Deste modo, reconhecemos que Deus, infinitamente misericordioso, é maior que os nossos pecados, por mais numerosos e graves que eles sejam. Confessamos que Deus perdoa e deseja sinceramente perdoar todos os nossos pecados e que não há falta, por mais grave que ela seja que não possa ser perdoada a um coração verdadeiramente contrito, mediante o Sacramento da Penitência que Jesus Cristo confiou à Sua Igreja. “ Não há pessoa, por muito má e culpável que seja, que não deva seguramente esperar o seu perdão, desde que o seu arrependimento seja sincero” (Cat.Rom.1,15,5). Jesus Cristo, que morreu por todos os homens, quer que na sua Igreja as portas do perdão estejam sempre abertas a todo aquele que se afastar do pecado” ( CIC 982 ). A fé na remissão dos pecados está ligada à fé no Espírito Santo e à fé na Igreja e na Comunhão dos Santos (cf. CIC, 976). Ao infundir sobre a Igreja o Espírito Santo, Jesus Ressuscitado deu à Igreja o poder divino de perdoar os pecados: “Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes serão retidos” ( Jo 20, 22 –23 ). De facto, como diz S. Paulo: “ tudo vem de Deus que por meio de Cristo nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Cor 5,18). Cristo enviou os Apóstolos para que “ em Seu nome, proclamassem a todas as nações o arrependimento e o perdão dos pecados” (Lc 24, 47). E iniciou a Sua pregação dizendo: “ Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). Jesus Cristo mostrou que a Fé e o Perdão dos Pecados estão ligados; e, por isso, nós confessamos: “ Creio na remissão dos pecados” e “ professo um só baptismo para a remissão dos pecados ”. E o Evangelho de S. Marcos conclui com as palavras do Ressuscitado:“ Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado” (Mc 16, 16). 3. O Baptismo e a Penitência sacramentos para a remissão dos pecados. A conversão dos baptizados, perdoados e beneficiários da ‘primeira tábua’ de salvação que é o Baptismo, constitui um combate árduo, laborioso e continuado, de todos os dias, sempre incompleto e nunca perfeitamente acabado. Por isso o Apocalipse, nas Cartas às Sete Igrejas, exorta a Comunidade dos crentes, em Cristo, a empreender um contínuo trabalho de conversão e arrependimento (Ap. 2,5-16). Há a primeira conversão, operada no Baptismo, mediante o qual mergulhámos e fomos enxertados no mistério de Cristo e da Igreja e há, depois, todo aquele combate da segunda ou contínua conversão da nossa existência terrena, em ordem à santidade e à vida eterna a que o Senhor não se cansa de nos chamar. Na Igreja, como escreveu S. Ambrósio “ existem a água do Baptismo e as lágrimas da Penitência” ( Ep.41,12; Cf. CIC 1429 ). “ O Baptismo é o primeiro e principal sacramento para o perdão dos pecados: une-nos a Cristo morto e ressuscitado e dá-nos o Espírito Santo” (CIC 985); mas não nos torna impecáveis, não suprime a nossa fragilidade e inclinação ao pecado, nem põe fim ao ‘combate’ a travar durante a nossa peregrinação terrena. Para os que pecaram, após o Baptismo, requer-se “a segunda tábua (de salvação), depois do naufrágio que é a perda da graça” (Tertuliano, Paen. 4,2). Como disse João Paulo II: “ o Sacramento da Penitência é a via ordinária para obter o perdão e a remissão dos pecados graves cometidos depois do Baptismo” (Ex. Ap. Reconciliação e Penitência, 31). Aos pecadores, baptizados e crentes em Cristo, só resta o recurso à Misericórdia Divina, que, pelo ministério dos sacerdotes, concede o perdão dos pecados, no Sacramento da Penitência. Para a recepção frutuosa deste Sacramento, o pecador penitente deve confessar humilde e sinceramente os seus pecados, estar verdadeiramente arrependido e disposto a emendar-se e a reparar, na medida do possível, o mal feito. “A penitência leva o pecador a tudo sofrer de boa vontade: no coração, a contrição; na boca: a confissão; na prática: toda a humildade e satisfação de obra ” (Catecismo Romano, II, V, 21). 4. Crise e necessidade do Sacramento da Penitência O Sacramento da penitência está em crise. Poucos se confessam e muitos comungam, sem preparação, sem consciência do que fazem. Noutros tempos, as pessoas raramente comungavam, sob o influxo negativo da heresia Jansenista, que via, na Eucaristia, um prémio reservado aos santos, medo que empurrava para a Confissão. Hoje, as pessoas comungam muito, mas não se confessam, pois, prisioneiras da presunção de inocência, julgam não terem pecados e não precisarem de ser perdoadas. “Ameaçados pelo eclipse, deformação, entorpecimento e anestesia das consciências”, assistimos à “perda do sentido do pecado”, ao viver como se Deus não existisse, à manipulação das normas morais, à “sujeição a modelos éticos impostos pelo consenso e costume generalizado mesmo quando são condenados pela consciência individual ”(João Paulo II, ib.18). Invertem-se valores, na prática rotineira, sem convicções e sem conversão, de forma que “ quem não tem a coragem de viver como pensa acaba por pensar como vive”. A incoerência, a fé sem impacto na vida, conduziram ao estado denunciado pelo Concílio Vaticano II: “ o divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” ( G S 43 ). Se, por um lado, nos deveríamos alegrar pela maioria das pessoas comungarem, na Celebração da Eucaristia, até porque ela é, em si mesma, “ o antídoto que nos livra das faltas quotidianas e nos imuniza contra os pecados graves” (Conc.Trento: DS 1638); por outro, desejando o seu necessário ‘decoro’ e fixando o olhar em Cristo, protagonista da celebração, que por nós se oferece ao Pai no Espírito, creio que nos deveríamos preocupar com a rotina e inconsciência com que tudo se faz, pois, como escreveu João Paulo II, “ a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta ‘intimidade’ com o Seu Esposo, recordando-se que Ele é também o Seu Senhor e que, embora ‘banquete’, permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o Sangue derramado no Gólgota ” (Encíclica ‘Ecclesia de Eucharistia’, n. 48). Uma consciente, digna e frutuosa Comunhão do Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo deve pressupor sempre um apreço e recurso periódico à Confissão ou Penitência Sacramental, em que não devem faltar as devidas disposições, entre as quais sobressaem o arrependimento sincero e o propósito firme de emenda. 5. Finalidades da partilha de bens, nesta nossa Quaresma O Santo Padre Bento XVI convida-nos, na sua mensagem quaresmal, a fundir o nosso olhar com o de Cristo, a partilhar a sua ‘compaixão’ com a multidão dos necessitados, pois, “não é possível de modo algum separar a resposta às necessidades materiais e sociais dos homens, das necessidades profundas do seu coração”, dado que, como dizia a Beata Madre Teresa de Calcutá, ‘quem não dá Deus, dá demasiado pouco’. A caridade não se deve reduzir a palavras, sem empenhamento e concretização material, como ensina Bento XVI, na Encíclica “ Deus é Amor”. Diz S. João que Deus é amor, quem permanece no amor permanece em Deus, devendo amar com obras e em verdade, não podendo amar a Deus invisível se não amarmos o irmão que vemos. Também S. Tiago censura a ‘fé sem obras’ dos que dizem aos pobres: “ ide aquecer-vos e matai a fome”, sem lhes dar o necessário (Cf. Tiago 2,14-16). Não há verdadeira conversão a Deus sem conversão às necessidades dos nossos irmãos e irmãs em humanidade. Recordemos que seremos julgados pelo amor dispensado aos necessitados onde Deus quer ser amado, reconhecido e encontrado (Mt. 25, 31- 46). Entre os meios clássicos para preparar e manifestar a conversão do coração estão: a oração, o jejum e a esmola. Da esmola diz o livro de Tobias: “ É boa a oração feita com verdade e a esmola, acompanhada pela justiça… Melhor é dar esmolas do que acumular tesouros, pois a esmola livra da morte e limpa de todo o pecado. Os que praticam a misericórdia e a justiça serão cumulados de vida. Aqueles que cometem o pecado e a injustiça são inimigos da própria vida” (Tob.12,8-10). Nos anos anteriores, o nosso contributo material, penitencial, num gesto amoroso de partilha, foi para os irmãos necessitados de Timor (em 2002), da Ucrânia (em 2003), das crianças maltratadas de África e países de missão ( em 2004 ) e dos doentes de Sida, assistidos pela ‘Fundação Bom Samaritano’, no passado ano de 2005. O nosso contributo material penitencial deste ano vai destinar-se, em primeiro lugar, às necessidades urgentes dos Cristãos da Terra Santa, a Terra de Jesus. Sabemos que eles são cada vez menos e constrangidos a deixar as suas terras, pela escassez de meios e pela perseguição e dificuldades de vária ordem. Em segundo lugar, destina-se a apoiar o novo projecto do Programa Terapêutico e Sócio-educativo da Caritas Diocesana. Este projecto, que vem na sequência da acção desenvolvida junto dos toxicodependentes durante dezasseis anos, em duas comunidades terapêuticas, terá um âmbito mais vasto, abrangendo, para além dos toxicodependentes, crianças e jovens em situação de risco, mulheres vítimas de maus tratos ou de outros problemas familiares, bem como pessoas idosas e/ ou sem abrigo, em situação de emergência. Confiamos, de novo, este ano, à Caritas Diocesana a dinamização desta actividade pastoral que consideramos da maior relevância, agradecendo, desde já, toda a sua disponibilidade e dedicação. Évora, 2 de Fevereiro de 2006. + Maurílio de Gouveia, Arcebispo de Évora + Amândio José Tomás, bispo auxiliar de Évora

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