No início do ano foi constituída a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, que tem “o objetivo de assessorar o trabalho de cada comissão diocesana, propor procedimentos e orientações comuns, ajudar em tudo o que possa proteger as vítimas e esclarecer sobre quadros normativos canónicos e civis relacionados com os processos de abuso sobre menores, tanto no que respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor”.
O organismo tem como secretária a advogada Paula Margarido, que é a convidada desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Estamos no final de uma semana em que surgiram novas denuncias de abusos sexuais, e em que o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa ficou a saber que está a ser investigado por alegado encobrimento.
Nalguns setores passa a ideia de que a Igreja goza de facilidades, no que diz respeito à Justiça, em particular nesta questão dos abusos sobre menores. É uma ideia errada ou há razões que a justifiquem?
É uma ideia completamente errada. Não tenho a menor duvida disso. Claro que poderão dizer que é muito fácil estar a defender esta minha dama porque pertenço a esta Igreja e porque estou nesta equipa de coordenação nacional presidida pelo Dr. Souto Moura, constituída por mais três elementos, da Diocese de Braga, Beja e de Coimbra. Mas a verdade é que não corresponde à realidade.
A Igreja tem feito um esforço muito grande, porque este flagelo atormenta-nos a todos nós, mormente à Igreja que defende e que a cada dia tenta dar testemunho de Cristo. É uma realidade com a qual nós nos habituamos a lidar tratando-a não por “tu”, mas com alguma proximidade, somente num tempo mais recente. Nessa medida, a Igreja portuguesa obedeceu ao repto lançado pelo Papa Francisco que estes flagelos desapareçam, ou que façamos tudo o que está ao nosso dispor para que sejam combatidos. O tal bom combate. E daí que temos as Comissões Diocesanas. A do Funchal, da qual sou coordenadora, foi criada em 2019. As demais dioceses criaram as suas com regulamentos, com procedimentos muito claros e eis que em fevereiro deste ano, surgiu então esta equipa de Coordenação Nacional para lançar procedimentos mínimos, e uniformizar esses mesmos procedimentos. Em prol do quê? Em prol deste combate, deste flagelo de ataque, de violência exercida contra os nossos menores e contra os adultos vulneráveis. Portanto, não há aqui nenhum facilitismo da justiça portuguesa para com a Igreja. Aliás, se alguma denuncia é apresentada junto do Ministério Publico, que é o titular da ação penal, e este instaura o inquérito. Os membros da Igreja, nomeadamente os membros das Dioceses e das Comissões Diocesanas, estão ao dispor e colaboram totalmente. Agora, não vamos ter ilusões. Nós bem sabemos que há relativamente pouco tempo era mais fácil não falar. Era mais fácil dizer: “Ó meu Deus isto é horrendo; não vamos estar a falar, é melhor esquecermo-nos”. Não podemos escamotear esta realidade, que é também uma realidade que existe esta realidade na sociedade portuguesa e também na nossa família. Porque muitas vezes quando há um elemento da nossa família – um pai, uma mãe, um filhou ou uma filha – que se porta menos bem, seja em que realidade for; nós tendemos sempre a desculpar e a não falar para que perante terceiros tudo seja visto como alguma aparência.
Sem falarmos de casos concretos, e tendo em consideração as recentes alterações no campo do Direito Canónico, não haverá situações em que faltou mais ação à Igreja?
Esta alteração recente que fala do Código de Direito Canónico, pela constituição apostólica de maio de 2021 em que, para além dos clérigos também os fiéis com dignidade podem ser punidos, é uma alteração muito importante porque não são só os clérigos, são também os responsáveis dos escuteiros, dos acólitos, o responsável da catequese. Também eles podem ser alvos de processo, e, portanto, de sanções.
É claro que nós queremos muito mais eficácia e queremos que estes crimes hediondos desapareçam, mas é um caminho que temos de ir traçando com algumas cautelas, que não significam silêncio. Não significam falta de atuação. Veja: o repto lançado pelo Papa Francisco, a criação das Comissões Diocesanas a partir de 2019, esta equipa de Coordenação Nacional já este ano com uma base comum, com um instrumento de procedimentos, a dizer atenção: o caminho é este. Perante uma situação de denuncia temos de fazer mais isto e mais isto. Ou seja, temos de apurar a existência de um fundamento sério para a notícia de um delito. Se houver efetivamente um fundamento sério de que aquele delito aconteceu, vamos comunicar de imediato a quem de direito, ao Ministério Publico.
Uma das queixas mais recorrentes é a de que a Igreja ou encobriu ou desvalorizou certas situações. E é quase unânime de que houve um tempo em que a Igreja não soube lidar bem com os casos de abusos. A mudança necessária está a custar a ser feita?
A mudança está a ser feita. A mudança está a ser feita. E custa. Claro que custa. Não vou dizer que não. É claro que custa: imagine uma situação em que um dos amigos em que eu tinha absoluta confiança nele, entretanto, pratica este delito horrendo, ou há suspeitas de que o tenha praticado: Para mim como deve imaginar, como para qualquer um de nós é horrendo, é tremendo. E, portanto, tendemos a refletir sobre o que fazer. Caminhar, proteger as vítimas e desencadear os mecanismos legais e canónicos que temos ao nosso dispor porque, não obstante eu gostar muito daquela pessoa que também merece o meu acompanhamento, não posso esconder que há aqui uma vítima que tem de ser protegida e é a esta vítima que temos de dar voz. Porque Cristo não abandonou ninguém, mas preocupou-se com quem? Com os mais fragilizados. E neste caso, as vítimas são as mais fragilizadas.
É este caminho que a Igreja está a fazer. Vai-me dizer: “É tarde!”. Não, não é tarde. Devíamos ter feito de outro modo? Ninguém diz que não. Agora, mais vale começar do que tentar aqui continuar a esconder, e não é isso que está a acontecer.
A Conferência Episcopal Portuguesa fez um bom caminho. O nosso presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Ornelas Carvalho tem feito um caminho – eu sou advogada, mas não sou advogada dele – tem feito um bom caminho. E é pena que todas estas notícias vão surgindo e também falamos de D. Ximenes Belo, por que não? Não vamos escamotear a verdade e como é horrendo aquilo que vem na comunicação social. Se calhar poderão dizer: mas esconderam. Provavelmente sim, provavelmente não. O que eu lhes posso garantir é que a partir deste momento e a partir de 2018, 2019, o caminho é de nada esconder. Vamos reservar as vítimas, vamos protegê-las. E os agressores devem ter o devido encaminhamento.
A opinião publica fica com a ideia de que algumas medidas disciplinares aplicadas pelas Dioceses, por exemplo, ficam aquém da gravidade dos eventuais crimes. O que pode justificar, do ponto de vista jurídico, a aplicação de penas diferentes?
Não há aqui propriamente um processo disciplinar. Percebo que o diga só para que os nossos ouvintes também lá em casa percebam. Há aqui efetivamente um processo canónico e há também um processo civil. Processo civil entenda-se, como processo criminal, portanto, civil por oposição ao canónico
Perante uma notícia de um delito desta natureza, poderão eventualmente ser aplicadas medidas cautelares. E medidas cautelares não são as medidas de suspensão. Poderão ser e serão com certeza medidas de afastamento ou proibição do exercício do ministério. Estas medidas que, provavelmente num passado recente, não eram tomadas, e não eram tomadas, porquê? Voltamos ao mesmo. Porque sempre foi assim e vamos então tentar que tudo se faça de outra forma, para que não cause um grande alarido. Averdade é que esta mentalidade está a ser alterada. E nós já temos decisões -medidas cautelares recentemente tomadas – nomeadamente por D. Manuel Clemente de afastamento de uma determinada pessoa, de um determinado sacerdote perante uma notícia de um determinado delito e que, não obstante não haver ainda decisão, porque o processo canónico está decorrer, a verdade é que esta medida cautelar foi tomada e com grande coragem. Ou seja, com grande coragem relativamente a um passado muito recente.
Há muitas sensibilidades nestas matérias. Como é que gere a necessidade de suspender os suspeitos e o respeito pela presunção de inocência?
Voltamos ao mal menor. Temos de proteger a vítima. O objeto da nossa proteção são as vítimas, mas não podemos olvidar de forma alguma o agressor. A verdade é que o agressor, ou agressora também dando testemunho de Cristo, e é isso que estamos aqui a fazer diariamente – o tal amor – também vai perceber que, não obstante poder estar inocente vai causar mais alarido continuando no exercício do seu ministério. E, portanto, deverá com certeza aceitar em prol de um bem maior, essa tal medida de afastamento do exercício do ministério. Seja ele do sacerdócio, seja ele de responsável da catequese, do responsável dos escuteiros. Se sobre mim incidisse uma notícia de um delito desta natureza, eu procuraria que a verdade fosse descoberta. Contribuiria para isso afastando-me do ruído. E é isso que todos devem fazer. E depois claro, estas comissões diocesanas também darão o seu devido acompanhamento psicológico e também religioso a estes agressores. Esse é um caminho que também tem de ser feito. Não vamos pensar que já está condenado. Não. Se sobre essa pessoa recai uma dúvida, um fundamento sério de ter praticado um delito que é gravoso, deverá afastar-se para que o processo decorra com a normal sequência que é natural neste tipo de processos.
A Santa Sé tem insistido, nas suas últimas indicações, sobre a obrigatoriedade de comunicação às autoridades civis destes casos. Julga conveniente que exista essa comunicação mesmo em casos que já se encontrem prescritos?
Sim, mesmo. Neste documento que a equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas disponibilizou – não obstante eu ser advogada, e o doutor Souto Moura, antigo procurador-geral da República, presidir a esta equipa -, sublinha-se que eu tenho a minha sensibilidade e posso entender que está prescrito, mas pode haver outros entendimentos. Bem sabem que, onde há um advogado, há sempre uma opinião. Nessa medida, devem ser comunicadas, mesmo que o entendimento daquela comissão seja que a situação está prescrita, civilmente e canonicamente. O nosso entendimento não tem qualquer valoração, comunicaremos sempre. E comunicaremos também à Comissão Independente, que tem competências e atribuições completamente distintas das comissões diocesanas e da equipa de coordenação nacional, mas está a desenvolver um trabalho importante e todos os elementos e eventuais notícias de ilícitos devem chegar até ela.
As prescrições são muito complicadas, neste tipo de natureza de crime, porque vão oscilando. Relativamente a pessoas com menos de 23 anos, por exemplo, a prescrição começa a contar a partir dessa idade, há aqui muitas dúvidas e deve comunicar-se sempre, às autoridades civis – neste caso ao Ministério Público – e também à diocese.
Pode existir alguma confusão, junto do público, quando se fala de casos que estão efetivamente prescritos ou já viram decorrer o seu respetivo processo, à luz da legislação em vigor, e são agora divulgados, como se fosse possível julgá-los de novo…
É um problema de comunicação, porque efetivamente, estando prescrito, e tendo sido sentenciado, nessa medida, não poderá haver novo julgamento. Dou só nota do seguinte: um crime nunca prescreverá se o ofendido tiver menos de 23 anos, mesmo que já tenha decorrido o prazo prescricional. Estamos a falar da lei civil…
O Direito Canónico é diferente, por exemplo…
Sim, já vai para os 20 anos [após o ofendido ter completado 18 anos de idade].
Mas além da prescrição, há casos que chegam agora a público sobre os quais foram tomadas medidas à luz do Direito Canónico do tempo. Olha-se para essas situações, à luz do novo ordenamento jurídico, e fica a impressão de que se poderia fazer mais, mas a verdade é que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime…
Exatamente. A lei aplicável à data é a que teve de reger a situação em concreto, naquela época, e não pode haver agora um novo julgamento. Isso é legalmente inadmissível.
A Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis já tem dados relativos a eventuais denuncias de todas as dioceses? Tem-se procurado articular um conjunto de práticas comuns, nas respostas a estas situações?
Sim, já temos alguns números, mas constata-se que não são os números da Comissão Independente.
São menos?
São muito menos. Há denúncias de quase todas as dioceses, umas com mais números de casos do que outras, mas de quase todas.
Quantas denúncias já chegaram, neste momento?
Temos cerca de 20, de situações, não posso dizer recentes, mas que estão a ser acompanhadas pelas Comissões Diocesanas respetivas. É um número muito diferente do que é avançado pela Comissão Independente, o que faz sentido, porque a Comissão Independente tem competências e funções muito distintas das Comissões Diocesanas. Nessa medida, é natural que os números sejam distintos, porque a Comissão Independente está a fazer um levantamento sobre qualquer assunto desta natureza que tenha acontecido há mais de 30, 40, 50 anos, esperando que lhe seja trazido, para que se possa perceber quais os procedimentos, os comportamentos que foram adotadas, as decisões que aconteceram, para que no presente se tente evitar que aquilo que de menos bom aconteceu se repita.
Seria útil, do seu ponto de vista, que as decisões tomadas nestes processos fossem tornadas públicas pelas dioceses? Penso, por exemplo, nos casos de demissão do estado clerical… Era importante que a comunidade soubesse qual foi a pena aplicada?
Essa é uma excelente questão e é muito delicada. Na lei civil debate-se até que ponto é que devemos divulgar as sanções, porque todo o condenado é suscetível de ser ressociabilizado. Depois temos aqui um anátema que vai acompanhar a pessoa. Anonimizando os elementos, ou seja, expurgando-os dos elementos identificativos da situação em concreto, não me choca que se divulgue. Agora, imagine, que se diz algo do género relativamente a um sacerdote da Diocese do Funchal: só o facto de se referir a Diocese do Funchal, por exemplo, facilmente se vai identificar a pessoa…
Não me choca e, de alguma forma, para a credibilização de todos estes procedimentos, seria útil, eventualmente, mas anonimizando essas decisões de todos os processos que possam levar à mínima identificação dos visados.
Tem havido partilha de informação entre a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas e a Comissão Independente para o Estudos de Abusos?
Tem havido comunicação com as Comissões Diocesanas, perante dúvidas que eventualmente tenham sobre um caso concreto, de como proceder: contactam com a equipa de coordenação e nós prestamos os esclarecimentos que nos são solicitados. No que respeita à Comissão Independente, qualquer elemento que nos chegue, de uma probabilidade séria relativamente à existência de delito, no caso em concreto, nós comunicamos. E também damos indicações no documento, na base comum, para que as Comissões Diocesanas – ainda que nós o façamos – comunique, de imediato, com a Comissão Independente. Tem-se feito esta comunicação, quase tripartida, porque a equipa de Coordenação Nacional transmite a informação, mas as Comissões Diocesanas devem, perante um caso que lhes é trazido, dar conhecimento à Comissão Independente.
Este é um trabalho que vai além do tratamento de denúncias de casos de abusos… Coordena, na diocese do Funchal, à comissão de acompanhamento de crianças, jovens e pessoas vulneráveis. A nível da sociedade portuguesa tem havido uma maior sensibilidade, nas últimas décadas, para estas questões? Isso também se reflete na ação jurídica?
Sem dúvida alguma. Há pouco tempo, conversava sobre isso com jornalistas, aqui na Madeira, que é um exemplo disso. Recorde-se o que acontecia, relativamente aos meninos e meninas de Câmara de Lobos… foi feito um trabalho extraordinário, a nível social.
As próprias famílias aceitavam este tipo de crimes como sendo normais, o que era lamentável. Houve um trabalho, uma consciencialização que tem vindo a ser feita, tal como acontece junto da Igreja.
Lembro-me de ouvir falar que aquela pessoa ia com aquele menino ou menina, mas todos ficavam cheios de vergonha, remetiam-se ao silêncio. Agora não, agora é precisamente o contrário, é à mínima dúvida – e são essas as indicações que temos dado também aos sacerdotes.
Não se pode pensar que a pessoa tem uma boa aparência, até leva o andor, é ministro extraordinário da Comunhão, está no altar, pelo que não ia acontecer… Não, temos de perceber logo o que se está a passar. Isto resulta de uma consciencialização da sociedade, de todos os envolvidos, para este tipo de crimes, que são hediondos e não podem acontecer, mais ainda numa Igreja que dá testemunho de Cristo, que é amor.