Prefiro a misericórdia ao sacrifício

Homilia de D. Manuel Clemente durante a Peregrinação de Setembro 2007 no Santuário de Fátima: Amados irmãos e peregrinos do Santuário de Fátima, neste Setembro, aniversário das aparições de Nossa Senhora: Têm as peregrinações esta natureza única de, realmente, nunca se repetirem. Manifestando devoção, têm o tempo do coração, que se fixa sempre no primeiro apelo. Cada vez que aqui vimos, a este sagrado recinto em que o Céu tocou a terra, é como se nos redescobríssemos onde afinal já estamos: no regaço da Mãe, ao encontro de Cristo e da Trindade Santíssima. Passam os anos, cansa-se mais o corpo, diminui o alcance dos olhos, somam-se porventura os cuidados e desgastes… Mas aqui tudo remoça, duma juventude eterna que refresca mil velhices: refiro-me à juventude de Deus, permanente começar e recomeçar das coisas, fonte cantante de surpreendente vida, sempre surpreendente… E é por isso também, irmãos e irmãs aqui reunidos nesta vigília tão desperta, fulgurante de velas de cera e de espírito, que tudo quanto a Deus respeita nos soa agora como se o ouvíssemos pela primeira vez. Começando pela sua palavra, que acabámos de escutar. Sim, irmãos peregrinos, a palavra de Deus é Deus comunicado, garantindo-se assim na imensidão da fonte. Aprendamos então: Porque é de aprender que se trata, segundo a ordem de Jesus. Ouvimo-la: “Ide aprender o que significa: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’. Porque eu não vim chamar os justos mas os pecadores” (Mt 9, 13). “Ide aprender!”, é ordem de Deus incarnado, para ser ainda melhor escutado, compreendido e obedecido. Pois aqui estamos, para que Nossa Senhora, constante Sede da Sabedoria divina, nos ensine o que ela mesma aprendeu e há noventa anos aqui mesmo recordou, nesta bendita Cova da Iria. Aprender, finalmente, que em Deus, a misericórdia, antes de ser acção é verdadeira natureza, modo íntimo de ser e, por isso, definição cabal. – Parece simples, esta primeira lição? Todos constatamos que o não é. Porque, se o fosse, há muito que a Igreja toda e aquela porção que formamos dela, família a família, comunidade a comunidade, muito melhor viveria a lição oferecida por toda a revelação bíblica, sobretudo quando finalizada na vida, morte e ressurreição de Cristo. Mas ainda tarda. Tarda em nós, esta aprendizagem concreta do Deus-misericórdia, que em cada uma das sagradas páginas se narrou para ser lembrado e convivido, para a salvação do mundo. Não quero, nem por sombras, ser crítico ou rebarbativo, pois desse modo nem sairia da minha própria consciência. Mas deixai-me, caros peregrinos de Deus, fazer em voz alta esta urgentíssima pergunta: – Será que, quando penso em Deus, O penso, espontânea e primeiramente como misericórdia e amor compassivo, em relação a tudo e a todos? Ou será que nem sequer penso em Deus a partir d’Ele e das páginas bíblicas em que se revela, mas sim a partir de mim, agigantando muito os meus próprios sentimentos, quando não ressentimentos? E, a esta luz, ou antes obscuridade, perguntemo-nos ainda se muito do ateísmo dos outros não corresponde ao escasso teísmo nosso, ou à deformada imagem que damos do Deus verdadeiro, a que tão demoradamente nos convertemos. Sim, é-nos também dirigida esta noite a ordem estrita de Jesus: “Ide aprender o que significa: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício1’”. E como haveria Deus, suma bondade, verdade e beleza, de preferir outra coisa senão aquilo que Ele mesmo é, criando-nos a todos, para o fruirmos também? Deus prefere a misericórdia, porque nela se define e nela como que infindamente se resume. – E como falou de Deus a “Mãe de Misericórdia”, quando aqui nos exortou, sobre os braços da azinheira? Essencialmente como de Alguém inconformado, por nos perdermos pelo pecado, que é sempre e só outro nome do desamor e da não-misericórdia. Sejamos concretos, irmãos peregrinos, sejamos concretos, precisos e eficazes: entre agora mesmo cada um pela porta do seu coração e da sua consciência e verifique bem lá por dentro o que tem ou não tem, em relação a Deus e ao próximo. Sonde cada um a luz e a sombra que lá estejam, repassando de olhar interior cada rosto mais ou menos estimado, cada encontro e cada desencontro, cada desejo e até cada aversão. E isto, irmãos e irmãs, sem andar depressa nem desistir de si mesmo ou de alguém. Porque mais acima, irradiando do Alto e jorrando dos Corações de Cristo e de Maria, novamente acolhida por corações plenos da infância espiritual dos Pastorinhos, a misericórdia nos toca e nos cura, como dom imenso desta hora bendita. Não será de súbito, mas será eficaz, esta conversão a Deus-misericórdia. Da eficácia a que chamamos mais propriamente graça, acção gratuita da bondade divina. Não a merecemos, nem a ganhamos por qualquer sacrifício exterior e formal, como os que Jesus afastava no trecho que ouvimos. Há-de induzir-nos, isso sim, ao novo sacrifico da oferta dos corações e das vidas, entregues com Jesus ao Pai, como o Espírito nos possibilitará fazer de seguida, na sagrada Eucaristia. Como o Espírito nos possibilitará fazer… Sim, o Espírito que nos transmite os sentimentos do Pai e de Cristo. O Espírito suave e fortíssimo, que tudo refaz na misericórdia divina, desde que encontre em nós algo da absoluta disponibilidade que encontrou um dia na jovem Virgem de Nazaré. Nela o Espírito pôde começar a recriação do mundo, na humanidade que ela cedeu ao Verbo eterno do Pai. Era um coração imaculado, era a sua verdade original e inteira, a da Imaculada Conceição. Connosco, o trabalho do Espírito de Deus terá de começar pela correcção profunda duma natureza que não nos chegou imaculada. Por isso o baptismo que tivemos, por isso a penitência que de algum modo o recupera e sempre aprofunda. Trabalhos de Deus, afinal, trabalhos do Pai, do Filho e do Espírito, para que o nosso coração possa aproximar-se do de Maria, na disponibilidade e correspondência cabal à misericórdia divina, que é a salvação do mundo. Deste nosso mundo, próximo ou global. Trabalho da Igreja também, de todos nós que escutamos a Palavra, actualizada pelo Espírito em cada sacramento e circunstância, difundida e partilhada em toda a caridade solidária. Para que do Deus-misericórdia renasça um mundo misericordioso, por acção dos discípulos de Cristo. Misericórdia divina nos discípulos de Cristo, que possam dizer hoje aquilo mesmo que um inolvidável Concílio Ecuménico disse há mais de quatro décadas e todos deveríamos saber de cor. Deixai-me repeti-lo como se proferisse uma oração, certo de que a Mãe de Misericórdia, Senhora da Visitação, gostará também: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo as dos pobres e de todos os aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração” (Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Guadium et Spes, nº 1). O coração de Deus, o coração de Maria, o nosso coração, unidos numa única e activa misericórdia, para com tudo e todos, sempre. Desígnio grande, na verdade, que comove e preenche todo o coração generoso: os vossos corações, queridos peregrinos! Mas que tem um requisito prévio, um só e inevitável, a nossa conversão. Exige de cada um a decisão firme de reconhecer o que lhe falta, emendar o que o deforma e acolher inteiramente a acção da graça. Diante da proposta divina, Maria respondeu com a sua verdade: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). Nós teremos de responder, nesta noite e sempre, com a verdade de cada um, onde encontraremos resistências que Maria não tinha nem admitia. Mas também confiados na palavra de Deus, que nos recria em misericórdia. Deixai-me repetir: Deus recria-nos mesmo, quando O deixamos tocar as nossas vidas, com o fogo do seu amor. Ouvimo-lo a São João ainda há pouco: “Se confessamos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a iniquidade” (1 Jo 1, 9). Pequeno trecho para dizer tantíssimo! Mas certeza absoluta do poder de Deus, da sua única intenção, da sua única alegria até. Assim é, amados irmãos, porque a alegria de Deus é que vivamos; e o seu comprazimento é que afastemos tudo quanto nos amesquinha e destrói. Ouvimo-Lo a Ele mesmo, ao Deus-misericórdia, bradando pela voz do profeta: “pois Eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja. Convertei-vos e vivei!”. Irmãos peregrinos: a nossa celebração agora, a nossa vigília atenta, é a resposta, grata e decidida, à mesma exortação divina, reactivada aqui pela “Mãe de Misericórdia”. Como no coração de Maria, é agora neste coração da Serra de Aire em que vigiamos todos, que a misericórdia divina encontrará correspondência plena para que o eterno desígnio se cumpra: um mundo de Filhos de Deus, um mundo de irmãos verdadeiros! Que não seja por nenhum de nós que demore o seu cumprimento. Fátima, 12 de Setembro de 2007 + D. Manuel Clemente

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