Preencher a vida com espaços vazios

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Na quaresma os altares despem das flores, a liturgia dos aleluias, as vestes de cor púrpura, procurando um ambiente mais reflexivo. No fundo são espaços vazios para nos ajudar a (re)pensar na vida.

Nos primórdios da humanidade, o saber transmitia-se através da palavra falada. Depois, com a escrita foi possível armazenar mais o conhecimento, mas só alguns tinham acesso a ele. A razão era simples, as letras estavam dispostas umas a seguir às outras, sem espaços a dividir as palavras. Assim, apenas os escribas conseguiam ler se o fizessem em voz alta.

O que tornou a leitura acessível à pessoa comum, como tu e eu, foi a introdução de espaços vazios.

Depois, embora ainda se escrevam parágrafos em livros que ocupam uma página inteira, se houver parágrafos mais curtos e espaçados, não só a leitura fica mais leve, como aumenta a nossa capacidade de reter o que lemos e distinguir o contexto essencial da mensagem. Vê o que acontece com a expansão de artigos em blogs.

Ainda, quando queremos arrumar uma mesa de trabalho, armário, ou alguma divisão em casa, se o esforço servir para eliminar objectos e deixar o espaço mais vazio, fica a sensação de arrumação e simplicidade. Lembro-me de um grande amigo que tinha o quarto cheio de espaços vazios e que isso dava-me a sensação de ter o quarto sempre arrumado. Era uma sensação agradável – confesso – e o inverso da que encontrava quando pensava, ou entrava, no meu quarto. Aliás, periodicamente, “arrumar o quarto” era para mim sinónimo de “esvaziar o quarto.”

A um dado momento comecei a pensar no valor que os espaços vazios têm na nossa evolução cultural e, nesse sentido, talvez mereça a pena explorar o valor e significado de preencher a nossa vida com espaços vazios. O vazio não exprime neste caso uma falta, perda, negatividade, mas o essencial, um ganho em espaço e simplicidade. Aliás, comecemos por este último aspecto.

 

Simplicidade

O espaço vazio expressa o desejo de uma vida mais simples. Quanto mais coisas temos para fazer, maior é a probabilidade de se sobreporem, consumir o tempo que temos e o que não temos, e tornar, assim, a nossa vida bem mais complicada do que desejamos.

Ter espaços vazios em que nada se faz, ou produz, pode trazer alguma simplicidade à nossa vida e quem sabe que criatividade.

 

Momento presente

O espaço vazio pode levar-nos a desfrutar do momento presente que é, na prática, tudo o que realmente temos. O passado já foi e o futuro nada é enquanto não se tornar presente. Por isso, tudo o que temos é, de facto, o presente.

Viver os espaços vazios sem pensar no que vem a seguir, nem preocupado com o que veio já, é uma forma de valorizar o próprio tempo.

 

Relacionalidade

Se estás sempre ocupado e preocupado com alguma coisa, torna-se muito difícil cuidar bem dos relacionamentos. E o que é da nossa vida sem eles? Pouco. Muito pouco porque somos seres relacionais. A relacionalidade define-nos como seres humanos.

Assim, criar espaços vazios torna-se a possibilidade dada aos outros de poderem entrar em relação connosco.

 

Pausa

Se todos os espaços estão preenchidos, vive-se num reboliço do qual é difícil sair. Um contínuo que nos prende a atenção, traz stress, cansa e gradualmente começamos a sentir o peso de uma vida excessivamente activa. Sem nos darmos conta, corremos o risco de não saborear a beleza de que toda a vida é um dom.

O espaço vazio pode servir como uma pausa na nossa vida em que não se faz nada. Sim, nada. Mas esse nada pausado é activo. Por exemplo, uma pausa para desfrutar de um contacto maior com o mundo natural e humano que desenrola a sua história à nossa volta e nos convida a participar nela. Experimenta.

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