Obra, com prefácios de António Guterres e cardeal José Tolentino de Mendonça, aborda luta contra a pobreza a partir da fé cristã
Lisboa, 16 out 2021 (Ecclesia) – A Cáritas Portuguesa e o Fórum Abel Varzim vão lançar este domingo uma obra póstuma de Alfredo Bruto da Costa, que aborda a luta contra a pobreza numa “reflexão ética”, a partir da fé cristã.
“Como os profetas, a voz de Alfredo Bruto da Costa foi também uma voz solitária, contracorrente, carregada de urgência e de futuro. Ele não foi apenas mais um católico no espaço político, universitário ou social: com esse elã profético era um símbolo de um catolicismo público que sempre se apresentou como um serviço aos últimos”, escreve o cardeal português D. José Tolentino Mendonça, no prefácio do livro ‘«O que fizeste do teu irmão?» Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo’.
O colaborador do Papa recorda o antigo presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) como “símbolo de um cristianismo enraizado na mística nua do evangelho e na doutrina social da Igreja, cultivando uma liberdade profética de pensamento e de palavra”.
“Os leigos devem conhecer a fundo, como ele conhecia, as páginas vivas do cristianismo, aquelas que mais nos desinstalam e desassossegam, aquelas que mais intensamente comprometem na construção do Reino de Deus”, acrescenta o cardeal português.
A obra conta também com prefácio de António Guterres, secretário-geral da ONU, para quem estes escritos “constituem um último e valioso legado do enorme saber e da profunda experiência” de Alfredo Bruto da Costa.
O responsável português recorda um amigo e “cidadão empenhado nas causas mais nobres”, relançando que “a ele e a Manuela Silva se deve o pensamento que esteve na origem da criação do rendimento mínimo garantido”.
O novo livro, indica António Guterres, “contribuirá para perpetuar a voz autorizada de Alfredo Bruto da Costa e a sua visão muito própria sobre a sociedade, os seus problemas e os mais vulneráveis dos seus membros”.
Bruto da Costa faleceu a 11 de novembro de 2016, com 78 anos de idade; antigo ministro e presidente da CNJP, promoveu diversos estudos e investigações sobre a pobreza em Portugal, em defesa da dignidade humana e da justiça social, assumindo-se como estudioso da Doutrina Social da Igreja.
O livro foi concluído pelo autor, antes da sua morte, e revisto posteriormente.
Alfredo Bruto da Costa admite que este é “um livro diferente”, para quem o viu como cientista social, apresentando “uma reflexão ética e, mais particularmente, uma tentativa de confrontar a pobreza no mundo com as exigências da fé cristã”.
O texto lamenta um “certo desfasamento” entre “o lugar da pobreza (nos seus diversos significados) na mensagem evangélica e, por outro, o entendimento que a esse respeito parece ter a maior parte dos cristãos e até a pregação corrente nas comunidades cristãs”.
A obra aborda questões ligadas ao “caráter universal da Boa Nova” anunciada por Jesus, como Messias, e a sua ligação com a pobreza, não entendida como um estado económico e social, mas como “uma realidade de outra ordem, uma condição interior de natureza religiosa”.
Bruto da Costa escreve sobre a ligação entre o direito da propriedade privada e o princípio do destino universal dos bens da terra, a partir do pensamento social cristão.
“Nos desígnios de Deus, a terra e tudo o que ela contém têm um destino. Ou seja, não se encontram abandonados, à disposição de quem melhor e mais depressa consiga apoderar-se da maior quantidade possível desses bens”, precisa.
O autor lamenta que a “grande maioria dos cristãos” não veja na pobreza “um problema de injustiça grave”.
“A situação em que nos encontramos sugere, diria que impõe, a todos os cristãos e a todos os homens e mulheres de boa vontade, uma reflexão séria sobre os limites do «ter»”, escreve.
A obra propõe uma “grande mudança de mentalidade” e sublinha que “a pobreza não existe por acaso” nem é “um fenómeno inevitável ou inexplicável”.
A apresentação da obra ‘«Que fizeste do teu irmão?» Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo’ vai ser feita por Guilherme d’Oliveira Martins, a partir das 16h30, na Sala da Extrações da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Largo Trindade Coelho), instituição em que Alfredo Bruto da Costa foi provedor.
A sessão é promovida pela Cáritas Portuguesa, o Fórum Abel Varzim e a Misericórdia de Lisboa, com transmissão online através da página de Facebook da Cáritas Portuguesa e da Agência ECCLESIA.
OC
Pré-publicação
Este é um livro diferente. Contém, fundamentalmente, uma reflexão ética e, mais particularmente, uma tentativa de confrontar a pobreza no mundo com as exigências da fé cristã. Naturalmente, muito do que digo acerca da escala planetária também se aplica ao nosso país e à Europa. De igual modo, nesta reflexão, embora fundamentalmente ética e cristã, não deixo de recorrer ao contributo pertinente da ciência. Não quero, com isto, dizer que as matérias aqui tratadas sejam irrelevantes para o combate à pobreza. Antes, pelo contrário. É certo que esse combate requer acções, medidas e políticas. Mas requer, também, mudanças institucionais, as quais, por sua vez, dependem de mudanças culturais e comportamentais, bem como do quadro de valores dominante nas sociedades nacionais e mundial. A maioria das acções e das políticas que se põem em prática são concebidas no pressuposto de que o contexto sociocultural e o padrão de desigualdade se mantêm inalterados. Isto acontece, designadamente, por duas razões. A primeira está na fortíssima solicitação que os governos de hoje sentem por parte de problemas imediatos, de curto prazo, que, por vezes, esgotam todo o potencial de intervenção dos governantes. É sabido que medidas de curto prazo não afectam estruturas. A segunda é que, por uma razão ou outra, os governantes e os actores sociais em geral parecem ter retirado a promoção das mudanças culturais do rol das suas tarefas e responsabilidades. São estas as limitações de partida da maior parte das iniciativas, públicas e particulares. É sobretudo desse contexto que este livro se ocupa. Não é sem alguma hesitação que decido publicar este texto. Sou um cristão comum, que, como os demais cristãos comuns, vive no meio do mundo. Sempre tive uma profissão em moldes idênticos aos de qualquer outro cidadão. Cursei engenharia, tenho trabalhado em assuntos económicos e sociais, tenho exercido alguma docência universitária e investigado sobretudo em domínios relacionados com a pobreza. Como disse, ganhei algum conhecimento da pobreza, na perspectiva das ciências sociais. Porém, nos domínios da teologia, dos estudos bíblicos ou da pastoral, tenho sido um simples curioso (talvez um pouco mais do que isso) e o pouco que sei resulta de um estudo disperso e autodidáctico. Assim sendo, poderá o leitor querer saber a razão por que ouso escrever sobre um tema como este. Confesso que não tenho resposta pronta, mas ocorre-me que de estranhar seria, antes, que um cristão se não interessasse por esses aspectos do problema. Como disse, o assunto vem-me ocupando ao longo de algumas décadas, ora na perspectiva científica, ora na política, na ética ou na bíblico-teológica. Admito que essa reflexão possa ter alguma utilidade para os cristãos em geral e, porventura, também para quem, não sendo cristão, se preocupe por estas questões. O leitor dirá se assim é. Possivelmente, o núcleo central da motivação para registar e publicar estas reflexões estará num certo desfasamento, porventura apenas aparente, que verifico entre o que me parece ser, por um lado, o lugar da pobreza (nos seus diversos significados) na mensagem evangélica e, por outro, o entendimento que a esse respeito parece ter a maior parte dos cristãos e até a pregação corrente nas comunidades cristãs. Refiro-me à pregação corrente. Quanto ao Magistério da Igreja, seria grosseiramente incorrecto dizer o mesmo. Pelo contrário, como o leitor terá ensejo de verificar nas inúmeras citações que encontrará ao longo deste livro, de documentos do Magistério, sobretudo de Padres da Igreja, de Papas e do Concílio Vaticano II. O leitor poderá desconfiar de que a linha de pensamento que tento aqui desenvolver esteja enviesada por um ponto de vista antecipadamente escolhido, servindo os textos bíblicos para pretensamente o justificar e fundamentar. De facto, não é difícil escolher meia dúzia de citações de textos bíblicos para defender este ou aquele ponto de vista, levando a água ao nosso moinho. Devo, por isso, esclarecer que o verdadeiro teste da fundamentação do que digo estará na medida em que a interpretação dos textos bíblicos e magisteriais que apresento se insira na mensagem global do Evangelho. Empenhadamente, convido o leitor a proceder a essa verificação. Alfredo Bruto da Costa, ‘«O que fizeste do teu irmão?» Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo’ (O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico) |