Portugal: Pandemia veio sublinhar necessidade de uma ética da «vulnerabilidade» – Sandra Martins Pereira

Nova diretora do Instituto de Bioética da UCP defende maior investigação sobre cuidados no fim de vida, lamentando «precipitação» no processo legislativo relativo à eutanásia

Porto, 24 nov 2020 (Ecclesia) – A diretora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa (UCP) disse hoje à Agência ECCLESIA que a atual pandemia veio sublinhar necessidade de uma ética da “vulnerabilidade” e atenção aos mais frágeis.

“A pandemia trouxe ao de cima vários aspetos ligados à vulnerabilidade, não só de quem tem a doença, mas as vulnerabilidades sociais e até económicas que têm sido mais do que mediatizadas”, referiu Sandra Martins Pereira.

A investigadora aludiu, como exemplo à “vulnerabilidade dos enlutados”, os que não se puderam despedir dos seus entes queridos da forma como desejariam, ou de quem cuida de familiares no seu domicílio, gerindo a administração de medicação.

“Se esta problemática já levantava questões éticas, antes da pandemia, agora causa preocupações de uma vulnerabilidade acrescida a estes familiares, que muitas vezes não têm acesso a uma equipa de cuidados paliativos, porque os profissionais estão alocados a outros serviços”, precisa.

A nova diretora assume a intenção de promover uma reflexão centrada sobre a “dignidade da pessoa humana”, que torna mais rica a própria UCP, produzindo “investigação de qualidade, que permita ajudar a sociedade a encontrar respostas adequadas”.

Sandra Martins Pereira assinala que a pandemia trouxe “novos desafios”, mas observa que muitos dos problemas mais mediatizados “já existiam”.

A entrevistada alude, em particular a um “fenómeno de normalização social” do sofrimento dos idosos, das pessoas em final de vida, que é necessário contrariar.

A pandemia tem sido devastadora para nós e espero que nos ajude a repensar várias dimensões do nosso ser e estar em sociedade, na relação com os outros”.

A diretora do Instituto de Bioética da UCP sublinha que “nenhum país estava preparado para esta pandemia”, pelo que é necessário procurar respostas na definição de critérios éticos e médicos sobre os doentes a tratar, em caso de colapso dos sistemas de saúde.

Portugal, acrescenta, procura definir, aprendendo com a situação de outros locais, os “modelos de deliberação ética que devem ser implementados”.

“Todos vamos aprender com esta pandemia”, indica Sandra Martins Pereira.

Para a especialista, a mediatização do confronto com a morte pode permitir que, no futuro, o acompanhamento de pessoas nos últimos momentos de vida seja mais humanizado, “flexibilizando normas”.

“Não são números, são pessoas que morrem devido a esta pandemia, bem como são milhares as pessoas que morrem devido a doenças incuráveis, em processos que causam extremo sofrimento”, assinala.

Sandra Martins Pereira assumiu o cargo para um mandato de três anos (2020-2023) e diz ter recebido a nova missão com “espírito de serviço”.

A diretora vai preparar o Instituto de Bioética para a sua integração na nova Faculdade de Medicina.

“O Instituto está ao serviço da Universidade Católica e está ao serviço da sociedade, no sentido de contribuir, com a investigação que produz, para influenciar decisões políticos em assuntos que tenham contornos éticos”, sustenta.

A responsável lamenta, a este respeito, a “precipitação” no processo que visa legalizar a eutanásia em Portugal, considerando que é necessária, do ponto de vista académica, uma maior investigação que “ajude a tomar decisões”.

Um dos estudos desenvolvido pelo Instituto de Bioética, junto de profissionais de cuidados paliativos, mostrou que 27% dos mesmos estariam na disposição de administrar um fármaco para “pôr fim” à vida de doentes terminais.

Para Sandra Martins Pereira, este é um número “preocupante” – duas vezes superior ao que registou num estudo semelhante, na Alemanha.

“A sociedade portuguesa merece mais, nesta discussão”, aponta.

A especialistas deseja que seja possível encontrar um “meio termo de equilíbrio” entre os vários posicionamentos, unindo todos na preocupação de “promover o morrer com dignidade”, considerando que isso não é sinónimo de “eutanásia nem suicídio assistido”.

Enquanto sociedade, temos de fazer um trabalho de maior reflexão, de mais investigação, em Portugal, sobre este ponto em que todos convergimos: enquanto pessoas, temos direito de que seja promovida a dignidade humana em todas as fases da nossa vida, sobretudo numa fase em que estamos particularmente vulneráveis, quando estamos a caminhar para o fim da vida e temos consciência disso”.

A diretora do Instituto de Bioética defende o desenvolvimento de “conhecimento, evidência científica robusta”, que permitam definir estratégias para aliviar o sofrimento humano.

Especialista em cuidados paliativos, Sandra Martins Pereira convida a uma reflexão “mais profunda” sobre as decisões éticas que são tomadas nas instituições de saúde, advertindo que faltam “estudos à escala nacional”.

A responsável adverte para confusões de conceitos como eutanásia e suicídio assistido ou “decisões de suspensão e abstenção de tratamentos” que possam ser tidos como “desproporcionados”, por não terem um fim terapêutico.

Uma das propostas para este campo seria a criação de uma comissão de ética “clínica”, de menor dimensão e que esteja disponível em permanência, para dar resposta a situações “complexas” com a ajuda de uma visão externa.

“Seria interessante desenvolver, no nosso país, começando com estudos-pilotos e acompanhado por investigação”, para permitir uma avaliação do “real impacto” destas equipas.

O Instituto de Bioética foi criado pelo Conselho Superior da Universidade Católica Portuguesa, em julho de 2002, com o compromisso de alargar e adaptar o trabalho de investigação em Bioética aos novos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia.

18 anos depois da criação do instituto, a sua diretora diz que com “a maturidade vêm novos desafios” e aponta “três grandes áreas” de ação: o trabalho em questões éticas aplicadas à saúde, “nomeadamente na área de cuidados continuados, cuidados paliativos e em fim de vida”; a ética e vulnerabilidade, a reflexão sobre “questões éticas que são suscitadas por grupos ou pessoas em situações de vulnerabilidade acrescida”; e a ética aplicada às novas tecnologias, uma área “que tem de ser desenvolvida”.

OC

 

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Agência ECCLESIA

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