Polémicas do diálogo entre religiões chegam a Fátima

A polémica que hoje estalou em torno do Santuário de Fátima trouxe para a ordem do dia os problemas relacionados com os esforços ecuménico e inter-religioso da Igreja Católica, mormente após o Concílio Vaticano II e durante o actual Pontificado de João Paulo II. A anunciada crise entre a Santa Sé, o Santuário de Fátima e a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tinha como pano de fundo uma série de acções de carácter inter-confessional que teriam, alegadamente, desagradado ao Vaticano. Esta situação de crise foi desmentida pelo Secretário da CEP, D. Tomaz Silva Nunes, em declarações à Agência ECCLESIA nas quais destacou “as boas relações” existentes entre todas as partes. A questão agora levantada à volta de Fátima aparece, de facto, como um acontecimento fora de tempo e de sinal contrário a toda a acção de João Paulo II, que num esforço religioso e diplomático reconhecido por todos tem procurado mostrar que o caminho para a paz é o da maturidade humana e espiritual, que conduz ao diálogo e evita o tão temido “choque de civilizações”. O Papa, que entrou em sinagogas e mesquitas, sabe que a guerra é provocada pela falta de respeito à cultura, à religião, à liberdade legítima do outro, e tem vindo a abrir a Igreja Católica ao diálogo com as outras religiões, de uma forma que até, muitas vezes, não é recíproca. Esta acção não é compreendida nem bem aceite por todos os católicos, pelo que não é surpresa que o Santuário de Fátima se veja confrontado com esta onda de contestação. Circula pela Internet a “Carta aberta aos Fiéis de Portugal sobre o escândalo no Santuário de Fátima”, onde as iniciativas inter-religiosas são classificadas como “sacrilégio”, as outras religiões classificadas de “seitas pagãs” e os cristãos não-católicos designados como “hereges e cismáticos” O Reitor do Santuário de Fátima é acusado de “tencionar permitir que este Santuário seja profanado pelos rituais e observâncias de falsas religiões”, pedindo que sejam investigadas “as alegações de má gestão” e, sobretudo, “suspeita de heresia por parte do Pe. Luciano Guerra”. Toda esta campanha é patrocinada pelos amigos do Centro de Fátima. Na conferência de imprensa que hoje deu em Fátima, o Pe. Luciano Guerra referiu que “o que está trás de tudo é uma mentalidade fortemente anti-ecuménica que já se manifestava antes de Fátima”. Aos jornalistas, o sacerdote manifestou disponibilidade para continuar no cargo até 2007, ano em que se concluem as obras da igreja da Santíssima Trindade e negou que conhecesse qualquer intenção do Vaticano de o afastar. Alertas vermelhos na Internet As manifestações de desagrado, que falam em “profanação” e “blasfémia”, começaram desde que se realizou em Fátima o Congresso sobre santuários e religiões, em Outubro de 2003. As tensões aumentaram com a vinda de um grupo de hindus ao Santuário. Para os defensores de (legítimas) posições mais conservadoras, expostas em importantes sítios católicos internacionais, o que está em causa é a intenção de abrir definitivamente o Santuário a outras religiões, como um centro inter-religioso, algo que nunca foi assumido por nenhum dos seus responsáveis. A questão foi utilizada por grupos fundamentalistas, com artigos de grande impacto na Internet, na imprensa mundial e com campanhas junto de vários episcopados. A campanha de contestação foi liderada pela revista Fatima Crusader (O Cruzado de Fátima) o maior periódico do mundo dedicado à Mensagem de Fátima, ligada às posições do padre canadiano Gruner, conhecido pela defesa de valores tradicionais. A campanha agressiva contra o Bispo de Leiria-Fátima e o Reitor do Santuário espalhou milhões de mensagens na Internet, criticando as intenções supostamente “panreligiosas” dos mesmos. Os inúmeros sítios Web dedicados a Nossa Senhora de Fátima primam pela tendência conservadora, visível nas temáticas abordadas e nas imagens de piedade utilizadas para adornar as páginas. O ecumenismo é considerado como algo que teria “horripilado todos os Papas antes de 1958” e nunca se fala em diálogo inter-religioso sem utilizar aspas. A nova basílica de Fátima, a igreja da Santíssima Trindade, é considerada como uma ameaça e classificada como “centro inter-religioso”, mesmo depois do categórico desmentido dos responsáveis do Santuário em relação a esse facto, deixando claro que “não temos, nem nunca tivemos, intenção de realizar, na igreja em construção, quaisquer celebrações que não estejam previstas nas directrizes da Igreja Católica”. Um grupo de leigos escreveu ao Papa contestando “o projecto de transformação do Santuário de Fátima num centro inter-confessional, aberto a todas as religiões”. A carta circula pela Internet, falando em “profanações pagãs do Santuário”, e faz parte de uma contra-ofensiva geral contra as “blasfémias” e “heresias” que, alegadamente, estão a toma conta de Fátima. Tradições religiosas em diálogo João Paulo II já ofereceu como intenção geral para o Apostolado de Oração o seguinte desafio: “que os cristãos, firmes na fé, se abram ao diálogo com os que pertencem a outras tradições religiosas”. Na mente de muitos, este diálogo é impossível, não deve sequer existir ou então deve dar-se em tais moldes que se assemelharia a uma soma de monólogos. O Catecismo da Igreja Católica afirma que “a Igreja reconhece nas outras religiões a busca, ainda que em sombras e sob imagens”, do Deus desconhecido, mas próximo, pois é Ele que a todos dá vida” (n. 843). No Concílio Vaticano II ficou explícito o reconhecimento e valorização de tudo aquilo que é positivo nas várias religiões. O Concílio falou da presença, nessas religiões, de “uma centelha daquela verdade que ilumina todos os homens” (Nostra aetate 2), “sementes da Palavra” e “riquezas que Deus generoso distribui pelas pessoas” (Ad gentes 11). O ecumenismo (diálogo e cooperação entre as Igrejas cristãs) é uma das linhas mestras do Pontificado de João Paulo II. Com este Papa, o ecumenismo foi a ponte para uma perspectiva mais vasta: a do diálogo e cooperação entre os crentes de todas as religiões. ste empenho no diálogo inter-religioso é uma originalidade do Concílio Ecuménico Vaticano II que João Paulo II levou a novos níveis. Começou com a histórica jornada de Assis, em Outubro de 1986; esta e outras iniciativas semelhantes tornaram mais fácil o diálogo entre as grandes religiões, de modo particular, entre aqueles seus representantes mais capazes de entender o alcance de um tal diálogo. Hoje, é possível afirmar, sem receio, que não haverá retrocesso nesta atitude, pelo menos por parte da Igreja Católica, pese embora as resistências que, mesmo no seu interior, se fazem sentir. Notícias relacionadas • Conferência Episcopal nega conflito entre Santa Sé e Santuário de Fátima

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