Pobreza tem muitas causas

Entrevista ao Jornal da Madeira de Alfredo Bruto da Costa, Presidente do CES e Vice-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz É preciso promover o conceito de “cidadania mundial” a favor do bem-comum, tal como defende a Doutrina Social da Igreja há mais de 40 nos, a partir de João XXIII. A pobreza tem uma dimensão moral que não pode ser ultrapassada sem a necessária mudança de mentalidades a vários níveis. O emprego instável e a sustentabilidade da segurança social não se resolvem apenas por intermédio de factores económicos ou financeiros, mas sobretudo através de uma “filosofia política”, em que se garanta “o grau de solidariedade que cada sociedade está disposta a dar”, segundo Alfredo Bruto da Costa ao Jornal da Madeira. JORNAL da MADEIRA — A existência de pobreza é fruto de quê? Culpa de quem? Como se resolve? Alfredo Bruto da Costa — Se a pobreza fosse uma coisa dependente de coisas cegas não teria uma dimensão moral, Mas tem esta dimensão precisamente porque resulta de comportamentos e de quadros culturais relacionados com homens e mulheres concretos; pode ser alterada com a mudança de conduta, pois, a pobreza não é fruto de um determinismo, não existe por acaso; é fruto de mecanismos que existem na sociedade e que fazem com que uns possam ter riqueza e rendimentos quase ilimitados, e outros não têm acesso aquilo que se considera o mínimo necessário para o ser humano viver decentemente. Não é um facto mecanicista, sublinho, não depende só de forças incontroláveis, é algo evitável e que existe em função de instituições de comportamentos, de quadros culturais, de valores que vigoram nas sociedades. Desta forma, é sempre possível mudar para melhor; e cada vez mais urgente. JM — Fala-se muito de factores inevitávies no aparecimento da pobreza, como o desemprego, a falta de competitividade, a falência da segurança social… Neste cenário, qual a solução? ABC — Se tivesse a solução no bolso seria a pessoa mais rica deste mundo. Todos andam à procura de soluções, não há uma solução apenas, porque a situação é composta por vários tipos de problemas. Na minha opinião, temos que ver o problema com base nas seguintes perspectivas: na linha de uma preocupação cristã perante os problemas do mundo, temos que olhar para as coisas primeiro na linha ética, dos valores, e ver o que está certo ou não; e face ao que não está certo tentar mudar. Em tudo isto, porém, há um problema também prático que é preciso considerar. É que qualquer mudança tem oposição. E não é oposição só por má vontade ou egoísmo; também há oposição das pessoas que tiram privilégios da situação vigente. Há muita gente que está convencida que assim como está é que deve ser, e então considera que a pobreza é uma fatalidade, um fenómeno inevitável resultante da actividade da economia, mas que não é possível evitá-lo. Por outro lado, há os que pensam que a pobreza existe só porque os pobres não querem sair dela. Veja-se a frase: “só é desempregado quem quer, é pobre quem quer”, etc., como se dependesse exclusivamente dos pobres. Portanto, existem muitas formas de compreender erradamente a pobreza, o que leva muita gente a pensar que não são precisas mudanças na sociedade, e que quem tem de mudar são as pessoas que são vítimas dessa situação, seja pobre, desempregado ou excluídos de um modo geral. Quer dizer, quando pensamos em mudanças há que ter também em consideração essas oposições para que a nossa estratégia seja viável, senão batemos com a cabeça na parede e não avançamos nada. Globalização e “bem comum mundial” JM — O mundo globalizado em que hoje vivemos também não condiciona essas mudanças? ABC — É um facto, nós vivemos situados no mundo que coloca condicionantes para as soluções. Não são determinantes, mas condicionam. Por causa da globalização, hoje, os países não podem defender-se como antigamente. A concorrência entre as empresas, por exemplo, fazia-se dentro de um país, depois à escala europeia e agora numa dimensão mundial. Temos que funcionar, pois, dentro deste contexto. Mas, isto não quer dizer que a globalização tenha que ser a que existe neste momento. Ela é um fenómeno mundial e aquilo que antes era preciso numa lógica do mercado nacional, hoje, é preciso numa lógica de mercado internacional que é o seguinte: o mercado dá bons resultados quando os concorrentes têm um nível de poder económico comparável; quando o nível é desequilibrado, os mais poderosos tiram mais vantagens e os menos poderosos até podem ficar prejudicados. Daí que o Papa João XXIII, em 1961 (há mais de 40 anos), na sua encíclica “Pacem in Terris” falava já em duas coisas importantes: na necessidade de haver o conceito de “bem-comum mundial”, em vez do bem-comum de um país, a que estávamos então habituados. Nesta ordem de ideias, é preciso que haja também uma autoridade mundial para promover o bem-comum; ora, passados todos estes anos após o apelo do Papa, ainda não temos esse conceito e muito menos uma autoridade mundial. Existem tentativas através da Organização Mundial do Comércio (OMC) com algumas regras no jogo, mas são regras que estão dominadas pelos mais poderosos, quer sejam países ou empresas multinacionais. Ainda há pouco soube de uma situação perfeitamente bizarra nas regras do movimento de trabalhadores entre os países, e que é esta situação: a OMC já aceitou que as empresas multinacionais devem poder transferir o seu pessoal dum país para outro, dentro da mesma empresa, sem problemas; se isto já existe, se as multinacionais conseguem, veja-se se um qualquer consegue… Isto para dizer que há dificuldades. Questão financeira versus filosofia política JM — E quanto à “protecção social” dos trabalhadores, o “Estado-providência” acabou? ABC — Fala-se muito na sua sustentabilidade e restringe-se o problema apenas à questão financeira. Penso que é um erro muito grande, porque o “Estado-providência”, antes de mais, é um acordo de sociedade que começa por pertencer não ao campo das finanças, mas ao da filosofia política. Compete antes do mais perguntar aos cidadãos que tipo de sociedade quer, que tipo de solidariedade quer que fique a cargo da sociedade, que tipo de solidariedade a cargo das famílias ou do indivíduo. O “Estado-providência” é fundamentalmente um modelo institucional de solidariedade. E só depois de conhecermos qual o modelo que queremos neste campo é que se pode saber quem deve contribuir, com quanto deve contribuir e a que preço deve contribuir. Se sou defensor de uma sociedade em que cada um olha por si e o Estado não olha por ninguém, eu não estarei disposto a pagar nada pela segurança social. Se sou uma pessoa que acredita que há uma coisa que se chama “risco social”, risco a que todo o cidadão está sujeito; e se estiver convencido que, normalmente, o cidadão não tem meios para enfrentar sozinho certos riscos, como uma doença grave, um desemprego…, nessa altura estarei disponível para contribuir para um sistema que tenha uma instituição de solidariedade nacional para acorrer a essas situações. Portanto, antes de ser um problema financeiro, é de natureza da filosofia política, de cidadania. Há que primeiro que perceber que as finanças não são tudo. Se começamos por discutir o fim estamos condenados ao insucesso. Qualificação de recursos e inovação tecnológica JM — Em termos de sustentabilidade da protecção social e dos empregos em geral, que radiografia faz do nosso país? Que orientações sugere? ABC — Somos uma sociedade (trabalhadores e empresários) sem uma qualificação exigida pela competitividade actual. O problema dos trabalhadores reflecte-se na competência, na qualidade do trabalho; e o dos empresários na parte da de gestão, de inovação, da tecnologia e da organização de empresas. Isto é muito importante porque o que está em causa não é só um problema dos trabalhadores, é também das empresas. Mesmo que tivéssemos trabalhadores competitivos, será que as nossas empresas estão a ser geridas de forma competitiva? Estão organizadas? Os empresários têm formação que é exigida ao mundo de hoje? Esta é a questão principal. A solução, quanto a mim, tem de respeitar os três tipos de pessoa que estão em causa: no caso dos trabalhadores qualificados e altamente qualificados, a solução é entrar declaradamente no mercado competitivo; e aqui o problema que se põe é haver empresas suficientemente agressivas para competir a nível europeu e mundial. Depois, um sector que tem uma certa qualificação mas que ainda tem de aumentar mais; para esses tem que haver sistemas de formação rápida; e aqui é tudo quanto podemos e devemos incluir sob a designação ampla de política de emprego; política esta que não depender apenas do Estado, as empresas devem também participar na qualificação dos seus trabalhadores; e estes têm de ser motivados para isso. É típico da cultura portuguesa olhar só para o dia de hoje e de amanhã; não vemos a médio e longo prazo; e a qualificação não é só um problema de promoção no trabalho, é a manutenção do próprio emprego que têm hoje; no fundo é um problema que deve mobilizar toda a sociedade. O terceiro aspecto a considerar nesta matéria da sustentabilidade abrange os trabalhadores avançados em idade, com baixas qualificações; para esses haveria uma solução mista no campo da política de emprego, mas que passa também por medidas de protecção social. A protecção social, hoje, tem um risco novo. Enquanto nos finais do século XIX pensava no desemprego; no nosso tempo, agora, temos o emprego mais instável, aos saltos, e portanto a protecção social tem de integrar este novo risco de emprego precário em condições, em termos de salários insuficientes e de não ser emprego para toda a vida. Penso que é chegada a hora de instituições responsáveis, eventualmente a Assembleia da República ter um centro de reflexão permanente sobre estes assuntos, como já existe noutros países. Os verdadeiros problemas, na suas mais diversas dimensões, não têm apenas causas económicas, são também reflexo de problemas culturais e outros. JM — Está pessimista quanto ao futuro, num contexto global? ABC — Tudo depende da forma como soubermos captar os condicionalismos. Até que ponto tenho capacidade para ver cada vez mais longe… As mudanças hoje são todas os dias. Se sou um “cidadão mundial” olho para as coisas de uma outra forma. E aqui lembro de novo a doutrina de João Paulo II que lançou um princípio inovador, que ele próprio não explicou mas que compete a nós, seguidores da DSI desenvolver, e que é o conceito da “cidadania mundial”. Eu sou um cidadão mundial, como aquele senhor africano que não tem nada para comer; logo, os deveres para com ele não se limitam aos concidadãos do seu país, mas competem a todo o mundo, a cada um de nós, viva ou não em África. Tudo depende da forma como eu quero pensar.

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