Pessoa e Bíblia: uma relação «desassossegada»

Debate sobre a fé sai das igrejas e estende-se à sociedade civil

Lisboa, 01 abr 2011 – A escritora Inês Pedrosa qualificou esta quinta-feira de “desassossegada” a relação que Fernando Pessoa manteve com a Bíblia e o padre José Tolentino Mendonça recordou as “marcas de leitura” daquele texto presentes na poesia pessoana.

A questão da fé não era “acessória” para o autor do ‘Livro do Desassossego’, referiu à Agência ECCLESIA a diretora da Casa Fernando Pessoa, instituição lisboeta que acolheu esta quinta-feira a primeira sessão do ciclo ‘A Bíblia, coisa curiosa’.

“Era um homem completamente viciado em enigmas e por isso nunca se fixou numa religião, como nunca se fixaria a nada”, lembrou Inês Pedrosa, acrescentando: “Foi muita coisa em simultâneo e em catadupa”, pelo que “nunca poderia dizer ‘Eu sou deste dogma’, dado que não saberia se amanhã acordaria assim”.

Pessoa “tinha a noção do sagrado, como acho que os grandes artistas têm sempre”, salientou a responsável, e embora “não se possa dizer que fosse católico”, era todavia “um homem de fé”.

Para Inês Pedrosa, a evocação de Jesus que “desce do céu e vem brincar connosco” constitui um texto “realmente bíblico e sublime”: “Esse momento é particularmente forte e mostra bem o brilho” que a figura de Cristo tinha para Fernando Pessoa.

O menino Jesus “rebelde, luminoso e salvador” evocado pelo heterónimo Alberto Caeiro em ‘O Guardador de Rebanhos’ constitui um excerto que para Inês Pedrosa “faz parte da Bíblia”.

A iniciativa que a Casa Fernando Pessoa organiza em parceria com a Faculdade de Teologia da Universidade Católica pretende alargar o debate sobre a fé para além das igrejas e instituições eclesiais.

“A intenção do padre Tolentino quando se aproximou de nós foi trazer a fé para a sociedade civil”, assinalou Inês Pedrosa, para quem a “função” da Casa Fernando Pessoa é suscitar a discussão “sobre assuntos que não estão a ser debatidos”.

A escritora considera que “a reflexão da fé é importante e particularmente interessante nos tempos de hoje, muito marcados por extremismos e por uma certa apatia do mundo ocidental” em relação a ela.

Tolentino Mendonça lembra que Fernando Pessoa, através do heterónimo Álvaro de Campos, adjetivou a Bíblia de “coisa curiosa”, uma forma que o poeta madeirense diz ser “muito acertada” para falar dos livros que a compõem.

“A Bíblia está na gestação de cultura, sendo comentada não apenas por teólogos e exegetas, mas também por músicos, poetas e pintores”, realçou o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

Na catequese quaresmal pronunciada este domingo, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, sublinhou que as “interpretações individuais” da Bíblia “que se afastem do sentir da Igreja, enfraquecem a fé pessoal chegando a adulterá-la gravemente”.

Esta declaração não implica fechar os textos bíblicos a quem está fora da Igreja: “O sentido pleno da Bíblia brilha na comunidade litúrgica” mas essa convicção “não exclui as infinitas leituras que se podem e devem fazer”, sustentou Tolentino Mendonça.

O ciclo de conversas, que prossegue este mês com poetas, teólogos e psicanalistas, pretende “mostrar como há uma multiplicidade de acessos ao texto bíblico que testemunham como ela continua a ser um texto sedutor e cujo charme continua a tocar o coração das mulheres e dos homens do nosso tempo”, explicou o sacerdote.

RM

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