Perseverantes ou inquietos: o Job sofredor que existe em todos nós!

Luísa Maria Almendra, UCP

O Livro de Job debate-se com muitas perguntas, de entre elas, uma das mais desafiadoras é a questão: porque é que sofremos? Alguns falam que o sofrimento é algo que nos acontece por acaso e aquele que sofre é simplesmente um mal-afortunado. Outros defendem que o sofrimento pode ser caminho para um sentido até então desconhecido. Neste último caso, aquele que sofre pode ou deve aprender a viver o sofrimento sem se deixar abater por ele. E é assim que alguns de nós sofremos, tentando integrar a dor na certeza de que o sofrimento tem sentido e significado. Porém as perguntas persistem: é possível conhecer este sentido? Haverá mais do que um significado para o nosso sofrimento? O simples facto de conhecer este sentido pode fazer alguma diferença na nossa vida?

 

O autor do Livro de Job acreditava que havia uma resposta adequada para a pergunta sobre o nosso sofrimento. E, por isso, ousa surpreender-nos, colocando-nos perante um «grito» veemente de angústia e de dor: Por fim, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento. Tomou a palavra e disse: «Desapareça o dia em que nasci e a noite em que foi dito:‘Foi concebido um varão!’ » (Jb 3,1-3). Nada, no início do livro (Jb 1-2), nos havia preparado para um tal derramar de amarga aflição. A simples imagem de amaldiçoar o dia do nascimento é suficientemente vigorosa. O sofrimento que Job vive no momento presente fá-lo desejar a simples supressão do dia do seu nascimento. Por outras palavras, o seu sofrimento é de tal modo aterrador, nas suas implicações, que o leva a ameaçar até mesmo a ordem que Deus estabeleceu na criação: Converta-se esse dia em trevas! Deus, lá do alto, não se preocupe com ele nem a luz o venha iluminar. Apoderem-se dele as trevas e a escuridão. Que as nuvens o envolvam e os eclipses o apavorem!… (Jb 3,4-5).

Este grito emerge como a abertura à grande «sinfonia» do sofrimento. As palavras de Job prosseguem com o som semelhante ao de um trovão, sublinhando o seu desejo de, pelo menos, poder ter habitado de imediato a morada dos mortos, ali onde ele acredita não haver lugar para a punição nem para a recompensa de Deus.

 

É no contexto deste doloroso lamento pessoal que o autor coloca, na boca de Job, a questão do sofrimento do ser humano em geral: Por que razão foi dada luz ao infeliz, e vida àqueles para quem só há amargura? Esses esperam a morte que não vem e a procuram mais do que um tesouro, esses saltariam de júbilo e se alegrariam por chegar ao sepulcro. Porque vive um homem cujo caminho foi barrado e a quem Deus cerca por todos os lados? (Jb 3,20-21.23).

A questão do sofrimento deixa de ser uma situação particular, para tornar-se a mira de uma contingência comum a todo o ser humano. Porém, a verdade fica bem assinalada: foi da questão, porque é que este sofrimento me está a acontecer a mim que desabrochou a urgência da questão, porque é que todo o ser humano sofre?

Nós não sabemos exatamente qual era o sofrimento que atingia Job. Conhecemos apenas alguns acontecimentos dolorosa que marcaram a sua vida (Jb 1-2; 7,5). Os detalhes do seu sofrimento não parecem importantes, porque a causa da angústia de Job parece ser mais profunda que a perda mais querida ou que a dor mais forte. Não é o sofrimento em si mesmo que está em causa, mas aquilo que esse sofrimento implica. Job tinha construído a sua vida numa fé implícita de que o universo era regido por uma ordem interna coerente.

Uma ordem que todo o ser humano conhecia e sob a qual organizava toda a sua vida. Era, por isso, normal esperar algo de bom na vida, principalmente quando se era bom. Porém, um tal sofrimento imerecido é inexplicável. Job coloca tudo em questão, mergulhando-se numa espécie de desespero, onde toda a vida humana parece reduzir-se a uma questão de boa ou má «sorte». Job parece mesmo aproximar-se do abismo que é considerar isto como a verdade da existência humana. Será preciso ler muito atentamente o decorrer das suas palavras e das palavras que são pronunciadas pelos amigos (Jb 3-31), pelo próprio Deus (Job 38,1-42,6) e finalmente por um jovem (Jb 32-37) e muitos outros sábios (Jb 28), para entrevermos a direção que, naquela altura, tomou a resposta à questão do sofrimento. Os amigos não responderam, limitando-se a justificar o agir insondável Deus e culpabilizar Jb (32,1-7). O próprio Deus parece não responder diretamente a nenhuma das questões colocadas por Job (Jb 38,1-42,6).

 

Por breves momentos, o autor parece abrigar a grande questão do sofrimento de Jb e de todo o ser humano na aparente insondabilidade do mistério e da alteridade divina (De facto, eu falei de coisas que não entendia, de maravilhas que superavam o meu saber – Jb 42,3b). Na verdade, precisamos de demorar-nos algum tempo para nos refazermos do impacto das palavras e da leitura, e entrevermos finalmente que a resposta se oculta na esperança singular e notável que Job sempre manifestou em Deus (…para Deus correm as lágrimas dos meus olhos. Jb 16,20; cf. 17,2-3; 19,25-27). Com Job todo o leitor crente aprende que a resposta à questão do sofrimento está dentro de si mesmo, na sua capacidade de não desesperar, mas antes de esperar e de esperar sempre em Deus. No entanto, se é absolutamente necessário, ali no coração do nosso sofrimento, encontrar uma esperança em Deus, então Job e todo o ser humano terão de se voltar para o próprio Deus e de, em todos momentos, aprender a pedir Deus a Deus. E é um pouco, por tudo isto, que podemos dizer que o Livro de Job, embora colocando perguntas, algumas delas sobre o sofrimento, é sobretudo o Livro da grande procura de Deus que, percorrendo caminhos tortuosos e difíceis, desagua numa esperança última que só Deus é.

Luísa Maria Almendra, professora da Faculdade de Teologia da UCP

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