O título parece contraditório. Mas nem no documentário de Catarina Mourão nem na fascinante pessoa de Lourdes Castro, que o filme documenta, há o que quer que se oponha a coisa alguma. Aqui tudo é afirmativo, positivo, comunicante e se entretece e entrelaça natural, espontaneamente, em complemento.
Não problematizemos. A postura de Lourdes Castro perante a vida em nada se complica e é isso que a torna tão fascinante aos nossos olhos. O que a faz tocar-nos tão fundo no coração. Provavelmente o que a torna a artista dos artistas, predilecta entre os demais.
Tratemos do filme. Deixemo-nos irresistivelmente conduzir. Primeiro por um curso de água depois pela Natureza, a própria vida: um jardim, ou mais que isso, algures no Caniço, na Madeira. Palpitante de existência! Árvores com fruto, sem fruto, grandes e pequenas, espécies raras, outras não, aves em volta ou entre os ramos, e depois flores, de muitas cores. E gatos, gatinhos à espreita. Além o restolho. O sol, o orvalho, a neblina.
No meio do jardim uma casa e dentro dessa casa um mundo vivo e imenso: de dentro de armários saem plantas, jacintos de raízes magníficas; e das prateleiras saem os diários registando, a par e passo, as descobertas, o fascínio aqui pela luz, ali pelo seu rasto, pelas sombras, silhuetas, pela cor ou sua ausência. E depois jorram histórias e confissões, entre imagens de um antes e de um depois que não acabam. Do Caniço a Paris, de Paris ao Mundo Inteiro e, de qualquer ponto do globo, ao Caniço de novo.
Há nesta casa uma mulher! Há desde o início uma mulher, mas que se confunde com a própria Natureza: que desliza como a água, que nos olha com olhar terno e cristalino de um gatinho, que nos fala melodicamente ao coração, com a harmoniosa simplicidade dos pássaros, ao contar quem é, o que faz e o que fez. Que entrelaça as mãos em molhos de ervas e percorre as páginas dos seus diários e herbários de sombras como ágeis raízes de árvores a evocar e a suster a sua origem, a sua história. Dia a dia, a celebração da vida, a certeza absoluta dum dia seguinte melhor, sempre melhor que o anterior.
Não é verdade que Catarina Mourão tenha documentado a vida de Lourdes Castro. Assim o diz a realizadora que atribui a Lourdes co-autoria. Verdade verdadinha, ambas construíram uma magnífica e tocante exposição da imensa luz e transparência que Lourdes Castro, artista dos artistas, indelével marca cultural aqui e em todo o Mundo, tão simples, tão fantástica e tão profundamente irradia.
Antes que o filme chegue às nossas salas de cinema, o que se deseja para muito breve, “Pelas Sombras” pode ser visto, juntamente com uma exposição antológica da artista, em Serralves, Porto, até 13 de Junho.
Margarida Ataíde