Paulo conduz-nos na descoberta do mistério da Igreja

Homilia de D. José Policarpo na Solenidade da Dedicação da Sé Patriarcal 1. A Dedicação da Catedral é um convite a mergulhar no mistério da Igreja que somos chamados a viver na experiência de uma Igreja particular, a nossa Diocese. Enquanto Igreja Mãe, a Catedral simboliza dimensões fundamentais da Igreja que queremos ser. Antes de mais, a sua fonte donde jorra continuamente a água viva que fecunda a Igreja: Cristo ressuscitado, cuja fecundidade é actuada através do ministério apostólico, exercido pelo Bispo, sucessor dos Apóstolos, que lhe foi dado como pastor, em nome e nas vezes de Cristo Bom Pastor. Chama-se Catedral, porque aí está a cátedra do Bispo como mestre da fé, a partir da qual alimenta e orienta o Povo do Senhor com a Palavra de Deus. A Catedral lembra-nos que a Igreja é um Povo alimentado pela Palavra, que suscita e fortalece a fé. Deixar de escutar a Palavra é separar-se da fonte, correr o risco de estiolar na secura das vozes do mundo. Circunstâncias especiais, como a celebração de um Sínodo sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, e o Ano Paulino, desafiam a nossa Igreja de Lisboa a fortalecer a sua fé, escutando a Palavra de Deus, sua fonte e contínuo alimento. Mas a Catedral evoca também a unidade, sempre a construir, na imensa variedade de expressões que constituem a riqueza da Igreja. Esta unidade só se consegue pela união de todos ao mistério de Cristo, realizada através dos sacramentos, sobretudo a Eucaristia. Na Catedral está o altar maior, o altar da Diocese, onde o Bispo celebra a Páscoa e realiza continuamente esta unidade de toda a Igreja diocesana em Cristo. A Liturgia da Catedral, presidida pelo Bispo, na sua qualidade e na sua intensidade, deve ser o modelo inspirador de todas as Eucaristias desta vasta Diocese, sempre celebradas em comunhão com o Bispo. Se percebermos isto, os cristãos descobrirão a necessidade e a alegria de participarem, de vez em quando, na Liturgia do Bispo, na Igreja Catedral. Esta evoca ainda o sentido de missão e de partilha fraterna dos dons. A Igreja é missionária por exigência do seu mistério, o mesmo de Jesus Cristo, e é sempre o Bispo que, em nome da Igreja, envia os que partem em missão, expressão principal da partilha de dons. Esta celebração litúrgica lembra-nos a centralidade da Igreja Particular como o espaço concreto da nossa vivência do mistério da Igreja. Quase cinquenta anos depois do encerramento do Concílio Vaticano II, há sintomas de relativização desta centralidade da Igreja Particular, numa tensão injustificável com a pertença e o serviço à Igreja Universal, como se esta tivesse prioridade sobre aquela ou a Diocese fosse apenas uma parte de um todo global, não percebendo que a Igreja particular não é toda a Igreja, mas é o todo da Igreja, a totalidade do seu mistério vivido por uma comunidade concreta, num lugar concreto. Desta totalidade do mistério faz parte a comunhão universal entre as Igrejas, a que preside o Santo Padre, Pastor Universal, Cabeça do Colégio Apostólico, a quem o Senhor confiou cada Igreja e toda a Igreja. Os que partem, são enviados pela sua Igreja e vão viver a sua vida e missão numa outra Igreja particular, ainda que essa missão seja marcada pelo dinamismo da comunhão universal. 2. Porque, neste ano, estamos a caminhar com São Paulo, deixemos que ele nos conduza à compreensão do mistério da Igreja. Na Estrada de Damasco, Paulo não se converteu à Igreja, mas a Jesus Cristo. Estava convencido que Jesus estava morto e que apresentá-lo como ressuscitado e como Messias era um abuso intolerável e perigoso para a fé judaica. Paulo está consciente de que foi o Senhor ressuscitado que lhe apareceu. Aliás situa essa visão na linha das aparições de Jesus ressuscitado aos Apóstolos e aos Discípulos: “por fim apareceu-me também a mim” (1Co. 15,8). Afinal, era verdade, Jesus estava vivo, tinha ressuscitado, como afirmavam os cristãos. Cristo envolve-o na Sua glória de ressuscitado, revela-Se-lhe como Senhor, designação preferida por Paulo até ao fim da vida. Mas se Ele era o Senhor, era também o Messias, o único que merecia o título de Senhor. E se era o Senhor e Messias, a Lei de Moisés já não era o caminho da salvação, mas sim esse Cristo Senhor, em Quem era preciso acreditar para chegar à salvação. Para Paulo, acreditar em Jesus é mais do que um acto da razão, é um abandono total a esse ressuscitado, é nascer de novo nesse encontro, é mergulhar n’Ele e ser um com Ele, é iniciar uma vida nova, centrada nessa relação com Jesus Cristo. Ele explica a sua vida e a sua missão com esse facto: “fui eu próprio apanhado por Jesus Cristo” (Fil. 3,12). Essa é a sua credencial: “Não sou eu livre? Não sou eu Apóstolo? Não vi eu Jesus, nosso Senhor? Não sois vós obra minha no Senhor?” (1Co. 9,1). Cristo é a sua força: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fil. 4,13). Cristo é a sua vida: “Para mim viver é Cristo” (Fil. 1,21). Mas depois deste encontro com o ressuscitado, Paulo é enviado à Igreja que estava em Damasco, é acolhido por ela, é-lhe confirmado que o Senhor que lhe apareceu é o Messias em Quem a Igreja acredita, recebe o baptismo, é-lhe especificada a missão, que é a missão da Igreja (cf. Act. 9,10-21). Paulo descobre a Igreja porque reconhece nela Cristo ressuscitado. Aquela luz que o envolveu, e transformou a sua vida, está em acção nos cristãos, identificando-os com Cristo. A Igreja é Cristo ressuscitado em acção transformadora e, portanto, salvífica. Isto leva Paulo a encontrar Cristo na Igreja, a identificá-la com Cristo ressuscitado. Ela é o Corpo de Cristo (cf. Act. 9,4s). Anunciar Jesus Cristo é a sua missão; celebrar a Sua Páscoa é o seu dom privilegiado; esperar a união definitiva com Cristo, no seio da Santíssima Trindade, é a sua esperança. Cristo é, para a Igreja, a fonte da vida, da sua coesão e do seu crescimento (cf. Col. 2,19). Paulo ama a Cristo, amando a Igreja e ama a Igreja, porque ama Jesus Cristo. Esta identificação entre Cristo e a Igreja, não anula a relação única que Cristo tem com ela, como Seu Senhor e Sua plenitude. Cristo é a plenitude da Igreja, porque o ressuscitado é a fonte inesgotável da vida. Mas a Igreja também é, por seu lado, plenitude de Jesus Cristo. Sempre que num cristão começa uma vida nova, expressão da vida de Cristo, a Igreja alarga as dimensões do Corpo de Cristo, cujo dinamismo é ser tudo em todos (cf. Efs. 1,19-23). 3. Esta identificação entre Cristo e a Igreja Paulo descobre-a e vive-a nas diversas Igrejas particulares. Antes de mais na Igreja de Damasco que o acolhe e onde fica durante três anos, até que uma mudança política com o poder adquirido por Aretas, Rei dos Nabateus, o faz temer pela sua vida e o leva a abandonar precipitadamente Damasco. Nessa Igreja, ele recebeu o baptismo e iniciou a sua actividade evangelizadora como Apóstolo (cf. Act. 9,19ss). A segunda Igreja referência para Paulo é Antioquia, onde entra pela mão de Barnabé. É esta Igreja que os envia para a grande missão junto dos gentios (cf. Act. 13,1ss) e continuará a ser uma Igreja de referência mesmo depois de ele próprio ter fundado outras Igrejas. Paulo cria uma relação mais estreita com as Igrejas por ele fundadas. Quando lhes escreve, identifica-as sempre como “a Igreja de Deus estabelecida em Corinto” (cf. 1Co. 1,2; 2Co. 1,1). Mas Paulo relaciona-se também com outras Igrejas fundadas por outros. A Carta aos Romanos é disso um exemplo. É claro para Paulo que a Igreja que se identifica com Jesus Cristo e brota da Sua Páscoa, é o conjunto destas Igrejas particulares, onde ele e os cristãos vivem, na sua união a Jesus Cristo, a plenitude do mistério da Igreja. Há em todas elas a consciência de que pertencem a uma única Igreja de Jesus Cristo. É a sua identificação com Cristo, morto e ressuscitado, que constitui a primeira exigência de universalidade. Esta exprime-se, antes de mais, na união apostólica e no reconhecimento da primazia de Pedro, o que dá à Igreja de Jerusalém uma centralidade indiscutível. Exprime-se, igualmente, na urgência da missão. Cada Igreja deve anunciar a fé, dando origem a outras Igrejas locais. Nesta grande missão participam todos os cristãos, homens e mulheres. O intercambio frequente entre as Igrejas, mostra que elas são Igrejas em comunhão, na fé e na caridade, grande desafio para a universalidade da Igreja e da salvação. Uma expressão concreta desta comunhão universal é a partilha de dons, as colectas, em que Paulo se empenha pessoalmente, em favor das Igrejas mais pobres, particularmente a Igreja de Jerusalém. Estas expressões da universalidade são, ainda hoje, expressões da vivência da totalidade do mistério da Igreja vivido em cada Igreja particular, no nosso caso, da Igreja de Deus que está em Lisboa: a plenitude do mistério de Jesus Cristo, o primeiro património comum de todas as Igrejas; a unidade do Colégio Apostólico, a que preside Pedro; o ardor missionário, que leva os membros de cada Igreja a assumirem a universalidade da missão; a inter-ajuda entre as Igrejas, mesmo no aspecto material. Todas estas dimensões estão presentes no dinamismo da Igreja de Lisboa. É preciso redescobrir que é na Igreja Particular que se vive a totalidade, incluindo a beleza e as exigências da universalidade. Sé Patriarcal, 25 de Outubro de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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