Passos da vida de João XXIII (repetição)

Do sacerdócio aos cinco anos de pontificado, o testamento do Papa Roncalli aos olhos do historiador António Matos Ferreira

Agência ECCLESIA (AE) – Onde encontramos os fundamentos da vocação sacerdotal de Angelo Roncalli?

António Matos Ferreira (AMF) – Angelo Roncalli nasce num quadro rural cujo quotidiano temos hoje dificuldade em imaginar como seria. No contexto de uma grande vivência religiosa, era normal que alguma das crianças de uma família numerosa entrasse no seminário. No entanto, do ponto de vista historiográfico, tem-se a ideia de que a experiência de ser padre foi para ele alguma coisa muito importante.

A Itália de onde ele era proveniente, onde nasce em 1881, tinha acabado de ser reunificada politicamente e o processo de industrialização em curso e as grandes diferenças que existiam no mundo rural faziam com que as questões sociais marcassem a ida de muitos jovens como ele para a vida sacerdotal e depois como encaravam o ser padre.

Estamos certamente diante de uma vocação que tem a ver com um todo: a sua vida, o seu ambiente familiar, etc.

AE – Com sacerdote, cedo se distinguiu, nomeadamente pelo facto de ter sido secretário do arcebispo de Bérgamo.

AMF – Angelo Roncalli tinha uma grande formação, não era só uma pessoa simples. Desde cedo adquiriu uma característica que no final do séc. XIX é relevante: a importância que o clero e muitos bispos dão ao que designamos por Movimento Católico, a consciência de que havia de se formar uma identidade católica significativa e interveniente na sociedade.

Não posso dizer que ele seja o exemplo típico do padre do Movimento Católico, mas desde cedo está ligado a essa ambiência.

AE – Como viveu os tempos em que foi capelão militar, durante a I Grande Guerra?

AMF – Para toda a Europa, e nomeadamente para a Itália, a I Grande Guerra foi um grande traumatismo humano e existencial. Roncalli, como outros padres que foram para a frente da batalha não para lutar mas para assistir os feridos, ficou muito marcado pela experiência do sem sentido da guerra. Há uma perceção da guerra como uma carnificina que não tem sentido.

AE – Em 1921 é chamado ao Vaticano para presidir às Obras Pontifícias para a Propagação da Fé. Como se adaptou a um novo ambiente e a um novo serviço?

AMF – Chamá-lo para Cúria para desempenhar esse tipo de funções significa que localmente era visto como uma pessoa com capacidades. Inaugura aí um percurso relevante, ocupando um dicastério que é muito importante.

Nessa época, a Obras Pontifícias para a Propagação da Fé permitem-lhe tomar contacto com todos os problemas relacionados com a presença do catolicismo em muitas partes do mundo. Há outro aspeto a ter em conta: nessa época na América Latina está a fazer-se o trânsito das igrejas dependentes da Propaganda Fidei para a autonomia da Igreja Latino-americana. O que é formativo, educativo, para a pessoa.

AE – Que relevância teve o seu percurso diplomático?

AMF – Ele tem uma experiência diplomática numa diversidade de países, no contexto do desencadear e o decorrer da II Guerra Mundial. E tem de gerir questões relacionadas com o surgimento das migrações judaicas para a Palestina, o problema do mundo muçulmano, das comunidades cristãs minoritárias e a necessidade de conhecer as comunidades ortodoxas.

A aproximação a novas realidades mostra que a sua personalidade não pode ser vista apenas como uma pessoa boa. Roncalli tem experiências de vida e conhece o mundo dessa época. Era um homem do terreno, para além de ser de uma grande espiritualidade.

O núncio Roncalli vai ser particularmente sensível ao problema de alcançar a paz, do desastre humano que a guerra cria, do problema judaico e do Holocausto e entra em contacto com uma zona que depois, em parte, irá fazer parte do bloco comunista.

A aprendizagem que faz é grande, marcada pela relação entre situações duras e complexas e a sua espiritualidade.

 AE – Como enquadrar a sua nomeação para Patriarca de Veneza?

AMF – Ainda antes foi nomeado Núncio em França, onde desempenhou um papel importante, tendo estado no trabalho de pacificação e de reorganização da Igreja Católica em França após a II Guerra Mundial.

Conhece figuras de grande relevo do mundo político da época e também do mundo católico, que terão grande protagonismo nomeadamente no II Concílio do Vaticano. Aí acompanha o surgimento da UNESCO, onde nessa época se fazem grandes debates sobre a problemática inter-religiosa.

A experiência francesa e o facto de ter corrido bem dá-lhe um estatuto que o leva a patriarca de Veneza, que era um lugar de destaque na Igreja italiana.

AE – Depois é eleito Papa para um pontificado que durou apenas cinco anos…

AMF – Por isso costumamos dizer que é um curto pontificado, porque habituados a outros mais longos…

Havia uma consciência de que era necessário lidar com realidades novas, como por exemplo a televisão. João XXIII é o Papa da televisão. É um homem que tem consciência desse novo mundo e é escolhido não tão gratuitamente como as pessoas pensam. É alguém que não tendo feito um percurso na Cúria não estava completamente fora.

Acaba por ser uma eleição de consenso, após o longo pontificado de Pio XII.

João XXIII encarna a necessidade de uma transição geracional, que depois se vai consolidar com Paulo VI. Foi um Papa que desencadeou processos de mudança importantes no interior do catolicismo.

AE – Porque terá escolhido o nome de João XXIII?

AMF – João XXIII é o nome de um Papa que já tinha existido, considerado não legítimo, eleito no Concílio de Pisa aquando da crise de Avinhão. Diz-se que João XXIII quis por fim a essa polémica: não contava com esse Papa e assumia esse nome.

Eu creio que escolheu também porque era sensível ao cristianismo do Oriente e por isso bastante joanino. Evoca a dimensão apostólica da tradição joanina.

AE – A convocação do Concílio Vaticano II é a grande marca do seu pontificado?

AMF – Quando João XXIII convoca o Concílio, muito provavelmente considerava que facilmente se resolviam os problemas. Mas isso não aconteceu. O que torna João XXIII uma figura chave é que ele decide não concluir o Concílio, mas mantê-lo aberto.

Após a primeira sessão volta a convocar uma segunda sessão. Mantem o Concílio aberto, mostrando que aceitou o repto de fazer dos cinco anos do Concílio um intenso período de formação do episcopado, como consideram alguns historiadores.

Muitos bispos chegaram ao Concílio sem saber o que deveriam fazer! O que aconteceu, sobretudo depois da morte de João XXIII, é que o Concílio foi uma oportunidade de renovação única do episcopado, pelos contactos, pelas conferências, as intervenções dos teólogos, o que tinham de fazer e o que se davam conta do que não sabiam fazer.

Nesta época, tinham-se alterado profundamente os meios de comunicação. Hoje ainda se podem ver as imagens que mostram a emoção vivida no funeral de João XIII, que foi transmitido em direto pelas televisões.

AE – A bondade é a característica principal da personalidade de João XXIII?

AMF – A bondade é o que sustenta o mundo. Mas a bondade sem competência não é suficiente. Como a competência sem bondade também não.

João XXIII era um homem bom, com uma grande espiritualidade, uma grande confiança em Deus e sensível a uma religiosidade popular e mariana. Mas soube ao mesmo tempo ligar-se a bons colaboradores.

Ele é o exemplo de um Papa que, apesar das circunstâncias da Cúria Romana em que viveu, soube mobilizar as pessoas, nomeadamente através do Concílio, que considerou como uma oportunidade de abrir as janelas da Igreja ao mundo.

PR

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