Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Solenidade do Natal do Senhor
«Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo», assim ouvimos há pouco, na Carta aos Hebreus. E impressiona sempre o facto de, nas primeiras gerações cristãs, já se resumir o que a teologia tem de essencial para nos dizer e quase o Credo que nos define.
A palavra ativa é “falou”: Falou Deus pelos profetas, falou-nos Deus por seu Filho. Da criação à finalização deste mundo, tudo é criação divina, absolutamente dita e feita. E, assim como a primeira criação culminou no ser humano, a nova criação culmina na humanização do ser divino, para que toda a promessa se cumpra pelo único poder que a sustenta.
A esta luz, plenamente natalícia, podemos entender muita coisa. Podemos entender-nos sobretudo a nós, tanto no que sempre nos move, como no estarmos hoje aqui. Move-nos, como seres humanos, o desejo de mais e melhor, a esperança de que possa ser assim. Fere-nos o contrário, em nós e à nossa volta, na contradição repetida disso mesmo que almejamos. Dói-nos, por nós e pelos outros, o despiste do desejo, a frustração do projeto, o esvaimento da esperança.
O aparente retorno de factos e circunstâncias não nos apazigua a mente e o coração. Nem o conseguem o alheamento de si ou a dispensa de sentido. Porque a humanidade como um todo, e o melhor dela em cada um dos seus membros, algo avançou de facto, embora nem sempre como devia. Sobrou ao menos a experiência, ainda que as chamadas “lições da História” nunca tenham alunos bastantes.
Foi assim até há dois mil anos e continua a sê-lo em quem ainda não chegou ao Natal de Cristo. Num tempo que já não é cronológico, antes ultimado da parte de Deus, que em Cristo nos diz tudo quanto finalmente nos resolve. Lembro, de modo um tanto prosaico, a resposta que uma vez ouvi a alguém a quem perguntara porque continuava cristão e praticante. Respondeu-me simplesmente: «Porque com Cristo a conversa nunca mais acaba!»
Creio que podemos dizer todos o mesmo, os que aqui estamos a celebrar o Natal. Reconhecemos em Cristo, da glória do Presépio à glória da Cruz, a resposta divina a tudo quanto o mesmo Deus nos pôs no peito, no desejo profundo só assim preenchido, sem mais adiamento ou desvio.
Pedro disse-o um dia, por todos nós, os de antes, durante ou depois: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus» (Jo 6, 68-69). Outro autor, pelo fim do século segundo, explica-nos o porquê de acontecer só então: «[Deus] preparava o tempo atual da justiça, a fim de que, tendo-nos convencido, naquele tempo [de iniquidade], de que pelas nossas próprias obras éramos indignos da vida, nos tornássemos dignos dela pela benignidade divina e, reconhecendo claramente a nossa impossibilidade de entrar pelas próprias forças no reino de Deus, pudéssemos ter acesso a ele mediante o poder de Deus» (Epístola a Diogneto, Ofício de Leitura, 18 de dezembro).
Também Jesus o dissera: «Sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5). Isto mesmo e no coração de cada um, que Deus alargou a confins que só Ele pode alcançar. Ao seu modo singular e espantoso, na paradoxal pequenez do «eterno nascido de ainda agora», como um dos nossos clássicos se referia ao Menino do Presépio (Padre Manuel Bernardes).
Assim «o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade»: – Quão magnífico é contemplar hoje este mistério e que importante é dar-lhe a consequência!
Para o contemplarmos, aqui estamos hoje, como o guardaremos na memória agradecida e orante. Na oração quotidiana do Rosário, os mistérios gozosos reenviam-nos ao Presépio de Belém, como a tudo o mais da infância de Jesus. É uma contemplação inesgotável, que fazemos com os olhos e o coração da Mãe de Cristo e certamente acompanhados por José. Depois, sim, podemos partir, como os pastores e os magos, a testemunhar o que vimos. Para regressar sempre e partir melhor.
Para ser visível e audível, o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. É iniludivelmente o facto cristão. Também isto aqui nos traz, por se tratar dum acontecimento concreto e preciso, hoje como então, em Cristo e nos seus, verdadeiramente seus.
O sentimento religioso é universal e configurou-se em várias tradições e cultos, como no cristianismo sociocultural também. Manifestando a condição humana, tanto no que a sua fragilidade requer como no que a sua transcendência vislumbra, é absolutamente respeitável e deve ser juridicamente garantido. Lamentamos que nem sempre seja assim e tanta gente sofra hoje em dia, cristãos e não cristãos, por falta de liberdade religiosa. Tristíssimas notícias nos dão conta disso em muitas partes do mundo, ostensivamente por vezes, disfarçadamente outras tantas.
Com Cristo, porém, não se trata meramente de ideia, sentimento, ou costume. Trata-se duma pessoa, dum facto concreto e situado, que ganhou dimensão universal a partir do que viveu, do que disse e do que fez – do presépio à cruz e da cruz à glória, porque a luz de Belém resplendeu na Páscoa.
Impregnou tão divinamente o seu presépio, que o alastrou a todos presépios do mundo, ou seja, aonde a vida nasce e requer o nosso envolvimento e cuidado – e da conceção à morte natural, convém repetir. Habitou e trabalhou em Nazaré da Galileia, mas fê-lo tão totalmente que conferiu à atividade humana uma dignidade imensa e irrecusável. Trilhou os caminhos do Israel da altura, assumindo e reforçando todo o bem que se realize, quando e onde for. Sofreu por todos nós aquela morte, para aí mesmo nos acompanhar na nossa, preenchendo-a com a ressurreição que nos ganhou. Celebrar coerentemente o Natal interroga-nos sobre o real cumprimento destes itens e empenha-nos a todos na sua efetivação.
Verbo encarnado, assim foi Jesus e de algum modo havemos de ser também nós. Não teve grande repercussão e alarido na altura, naquele vasto Império em que viveu. Mas foi tão absoluta a sua vida, traduzindo em humanidade a divindade, que alastrou depois, como alastra agora, irredutível na verdade, bondade e beleza que são inteiramente suas e se impõem por si, hoje como então.
Na sociocultura de hoje em dia, tão espessa como contraditória em si mesma, tão descrente de formas e de fórmulas, sejam estas quais forem, só nos resta o caminho estreito da coerência evangélica. Coerência que, por ser divinamente impulsionada, prolongará em nós a encarnação do Verbo. Como também ouvimos e convictamente agradecemos: «Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus».
É precisamente assim, só assim, que o Natal de Cristo continuará no mundo.
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2019
D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca