Ouvir as razões de quem não crê

O presidente do Conselho Pontifício da Cultura, cardeal Gianfranco Ravasi, apresenta em entrevista à Agência ECCLESIA o projeto do ‘Átrio dos Gentios’, uma iniciativa que valoriza a “escuta” de quem tem outras convicções, por parte da Igreja Católica, e procura ir ao encontro dos grandes temas da vida

Depois de Paris, Barcelona, Estocolmo, Tirana, Budapeste ou Florença, entre outras cidades, o Átrio dos Gentios vai chegar a Portugal, em plena crise, para falar do valor da vida, de esperança e da necessidade de resolver as questões fundamentais para se encontrarem soluções para as “pequenas coisas”. Guimarães e Braga, respetivamente capitais europeias da Cultura e da Juventude, acolhem a iniciativa, nos dias 16 e 17 de novembro.

 

Agência ECCLESIA – Como nasceu a ideia de criar um «Átrio dos Gentios»?

Cardeal Gianfranco Ravasi – A fonte, o ponto de partida é a intervenção de Bento XVI nas saudações à Cúria Romana, no Natal de 2009. Nessa ocasião, o Papa falou da necessidade de constituir uma espécie de ‘átrio dos gentios’, onde pudessem entrar os que não acreditam mas se interrogam sobre a transcendência, os grandes valores, a humanidade e, eventualmente, sobre o Deus desconhecido.

Nós, como um Conselho Pontifício que tinha em si a tradição de ser o Secretariado para os Não Crentes, criado após o Concílio Vaticano II (1962-1965), pensámos institucionalizar o ‘Átrio dos Gentios’ como espaço de diálogo entre crentes e não crentes sobre os grandes temas: a verdade, a justiça, o direito, a arte, o amor, a morte, a palavra sagrada das tradições religiosas, a transcendência, a ciência, o mal, a dor.

Começámos na Universidade da Bolonha (Itália), num encontro sobre ciência, filosofia e literatura, antes de ir a Paris, para a grande inauguração [março de 2011], porque era considerada a capital mais laica, secularizada da Europa.

Daí em diante, tivemos pedidos de dezenas e dezenas de cidades ou instituições, religiosas e não crentes, pelo que estivemos em Florença, para falar sobre a arte; em Palermo, sobre o direito, onde há o problema da Mafia; em Bucareste e Tirana, encontrámo-nos com os herdeiros do ateísmo; em Barcelona, para além da arte, houve o mundo da ciência, com o envolvimento de todas as universidades.

 

AE – Este é um projeto que implica a capacidade de ouvir. Como tem sido recebido este desafio pela Igreja Católica, mais habituada a uma dinâmica do discurso do que da escuta?

GR – Este elemento a que se refere é, seguramente, o mais importante, porque a caraterística fundamental [do átrio] está numa palavra, que usamos quase como símbolo: o diálogo.

A palavra, na sua origem grega, significa encontro de dois discursos: por isso, crentes e não crentes chegam com as suas razões, não é simplesmente para procurar um mínimo denominador comum. É antes a possibilidade de dizer com clareza, de forma elevada e também de forma popular, qual é a identidade de crentes e não crentes sobre os temas fundamentais da vida e, se quisermos, do mistério.

Por isso, a escuta é fundamental: não se pode fazer um ‘Átrio dos Gentios’ só com crentes ou não crentes. Hoje, além das dioceses, há organizações laicas que se organizam e nos convidam, como aconteceu na Cidade do México, onde irei em maio [2013], onde um professor, um filósofo não crente iniciou este percurso. A Igreja, neste caso, coloca-se numa posição de observadora das razões que transporta a própria razão.

Acredito que esta seja uma forma de celebrar, de forma nova, o Concílio Vaticano II.

 

AE – O último Sínodo dos Bispos (7-28 de outubro, Vaticano), sobre a nova evangelização, fez referência ao átrio nas propostas que entregou ao Papa. Este é um projeto para a conversão dos não crentes?

GR – Não, não. Diria antes que é muito semelhante ao ‘kerygma’, isto é, ao anúncio. Dou como exemplo a passagem de São Paulo pelo areópago [Atenas]: ele está num contexto cultural completamente diferente e adota uma linguagem que é compreensível para os seus interlocutores, mostra conhecer a sua cultura e depois apresenta a sua identidade cristã. Isto não quer dizer que os convença, até porque foi rejeitado. Alguns, no entanto, converteram-se.

Entendo que ambos, crentes e não crentes, não se reúnem no ‘Átrio dos Gentios’ para informar, simplesmente, porque a mensagem que têm é apresentada com ardor, é uma mensagem performativa. Não fazemos um congresso, apresentamos valores e eles, como tal, têm uma carga de convicções, os não crentes têm razões que nos fazem pensar, vividas com intensidade. É por isso que digo que não é evangelização, mas também não é um congresso temático, é um encontro de visões, de conceções. Nesse sentido, os cristãos também devem dar um testemunho caloroso.

Na UNESCO, em Paris, Jean Vanier falou do Movimento Fé e Luz, que se ocupa de pessoas com deficiência. Ele não estava ali para convencer os outros, mas o seu testemunho impressionou os não crentes; não o escolhemos para convertê-los, mas para que vissem o valor do amor cristão em prática. É por isso que digo que não é um congresso.

 

AE – Quais foram os momentos do Átrio dos Gentios que mais destacaria, até ao momento?

GR – Eu diria que os mais curiosos foram em Assis e Estocolmo. Em Assis, veio falar comigo o presidente da República da Itália, Giorgio Napolitano, que não é crente, mas é um homem muito nobre do ponto de vista moral e mesmo espiritual, devo dizer.

Ali havia seis tendas diferentes, nas quais se debatiam vários temas, em diálogo com crentes e não crentes, como os jovens, o grito da Terra, a mística.

Outro momento de sucesso, inesperado, foi em Estocolmo, na Academia do Prémio Nobel e depois num centro juvenil, o maior da Europa. Num ambiente fortemente laico, quase anticristão, diria, houve um interesse de tal ordem que fizemos 3 horas e 40 minutos de intervenções, sem intervalo, com transmissão televisiva.

 

AE – Como se vai desenvolver este átrio, no futuro?

GR – Há uma nova formulação, que está a suscitar muito interesse, ligada a categorias particulares: fizemos, por exemplo, átrios para crianças de famílias crentes e não crentes que foram um grande sucesso. Também já decorreram sessões para diplomatas e embaixadores e temos a intenção de promover um Átrio dos Gentios para jornalistas, para músicos, para o Cinema. Este será o futuro, para além das cidades.

 

Agência Ecclesia – A sessão de Guimarães e Braga, capitais europeias da Cultura e da Juventude, tem como tema «O valor da vida». Não é uma escolha demasiado genérica?

Cardeal Gianfranco Ravasi – Esta é a primeira vez, de facto, que abordamos – escolhido em Portugal – um tema tão vasto, antropológico. Penso, no entanto, que a vantagem é que, por causa de haver muitas intervenções, se possa obrigar as pessoas a abordar temas que não são dados por adquiridos. Ou seja, não se trata apenas de falar da bioética – alguns intervirão sobre estas questões das células estaminais, o aborto, a eutanásia -, mas de introduzir elementos que são a base para justificar o discurso da bioética.

 

AE – O que espera do debate com João Lobo Antunes [‘o valor e o sentido da vida de cada ser humano’]?

GR – Ainda não estruturei completamente o que quero dizer, mas quero insistir muito, usando textos bíblicos da categoria de “relação” e, portanto, da categoria de “corporeidade”, do corpo, por exemplo. Também quero falar da categoria de “limite”, da finitude do ser humano, isto é, da grandeza e da impotência: a crise, o mal, a dor, a morte e, por outro lado, a grandeza da criatura humana na sua relação com o transcendente, com o semelhante e com a matéria.

Tendo um tema muito amplo, vai ser possível mover-se sobre as grandes coordenadas, os grandes temas que muitas vezes não são abordados na sociedade contemporânea, que reduz tudo às questões imediatas. Penso que isto é algo com valor nesta sessão do átrio, até porque são cidades ligadas à cultura e aos jovens: quisemos falar mais de cultura, no sentido lato, mais do que de qualquer questão específica, ainda que cada interveniente aborde pontos concretos.

 

AE – Há a intenção de falar a todo o país, num momento de crise, de dizer alguma coisa ao Portugal de hoje?

GR – Penso que, ao falar de antropologia – também vou introduzir a referência ao transcendente – se vai introduzir o tema da esperança. Não conheço Portugal, apesar de o ter visitado algumas vezes, mas penso que vive a mesma experiência difícil de Espanha e Itália, pelo que há o risco de que as pessoas se contentem apenas com as “pequenas coisas”.

Assim, fazer uma intervenção forte sobre os grandes valores, é uma forma de sacudir um pouco as consciências e dizer: ‘Não se resolvem as coisas pequenas sem enfrentar as grandes’. Isto é, temos de criar uma atmosfera que não se limite às questões económicas nem financeiras, porque os seus problemas nasceram, em boa parte, quando se esqueceram as questões éticas, morais.

A verdadeira economia é uma ciência humanista, dizia o economista e prémio nobel indiano Amartya Sen. Por esse motivo, a falta de moralidade na finança, nos mercados, gerou miséria.

Acredito que voltar a oferecer ideias sobre a moral, os grandes valores, é algo precioso nesta situação.

 

AE – O Átrio dos Gentios passa pelas cidades num grande evento, que mobiliza muitas pessoas. Como manter esta dinâmica, após a realização de cada sessão?

GR – Essa é uma questão fundamental. Os primeiros eventos eram, por assim dizer, promocionais, para nos fazermos conhecer. Depois disso, em todos os lugares onde fomos, quisemos lançar, em concordância com todas as outras instituições que colaboraram nas sessões, uma espécie de comité, um grupo que continua a manter encontros de nível mais simples. É curioso o facto de a Universidade de Florença ter lançado um curso de um ano sobre temas da arte, lidos por crentes ou não crentes.

Na prática, posso dizer que a continuidade é assegurada, porque há outros eventos, de menor dimensão, em cidades próximas das que acolheram as sessões. O esforço é continuar, de outras formas, a experiência mais importante, e também em Portugal estamos já a pensar nesta continuidade. É uma condição indispensável.

OC

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